Manuel Aires Mateus e o edifício da EDP: “Não lhe desenhávamos a luz, mas sim a sombra”
O podcast No País dos Arquitectos é um dos parceiros da Rede PÚBLICO.
No 25.º episódio do podcast No País dos Arquitectos, Sara Nunes, da produtora de filmes de arquitectura Building Pictures, conversa com o arquitecto Manuel Aires Mateus, que nos fala sobre o projecto da sede da EDP, em Lisboa, e como este edifício dialoga com a cidade e com o rio. Este é o último episódio da segunda temporada, repleto de múltiplas histórias e curiosidades.
Desde tempos remotos que o rio influenciou o crescimento da cidade, que integrava um enorme volume de navios e um alargado conjunto de edifícios com actividades comerciais e portuárias tão “significativas no crescimento do Produto Interno Bruto português”. Com o avançar dos anos, estas actividades foram perdendo expressividade, mas ainda assim as condições ímpares do estuário do Tejo influenciaram a forma como a cidade cresceu e se estendeu para o outro lado do rio.
Manuel Aires Mateus recua a esse passado não só para constatar a transformação que o Cais do Sodré teve, nos últimos anos, mas também para perceber como é que o lugar foi encontrado antes da construção da nova sede da EDP: “As primeiras implantações na cidade são feitas do outro lado do rio, no Mar da Palha, e só depois é que vêm para este lado. É de facto este rio, este mar que temos à nossa frente que nos dá esta condição da cidade. Portanto, tudo aquilo que é a relação entre a cidade e o rio é sempre uma condição que Lisboa tem de privilegiar. (...) Quando nós olhámos para aquela zona em 2009 ou em 2010, percebemos que aquele era um sítio muito castigado da cidade. Aliás, a cidade, de forma geral, estava muito castigada. O Mercado da Ribeira não tinha sido recuperado. (...) Os edifícios à volta estavam muito decadentes e havia muito pouca gente naquela zona”, lembra o arquitecto.
A primeira premissa que se colocou foi construir “dois corpos perpendiculares ao rio”, à semelhança do que já acontecia no traçado da Baixa Pombalina. Hoje compreende-se que o passado longínquo da cidade ditou a implantação destes dois corpos, que viriam também criar “um espaço de pertença para o edifício da EDP”.
A condição subsequente do projecto foi a necessidade de transparência entre a encosta e o rio. Como os grandes espaços teriam de estar enterrados, o foyer, o auditório e as grandes salas de reunião ficaram abaixo da cota térrea. Não é por acaso que “o edifício é uma espécie de icebergue. Aquilo que vemos à superfície é muito menor do que aquilo que está enterrado”.
Apesar de a luz ser tão preponderante para uma estrutura como a EDP, em determinado momento da entrevista o arquitecto assinala a importância da sombra: “Nós dizíamos que não lhe desenhávamos a luz, mas sim a sombra. Queríamos criar o desenho da sombra sobre os vidros e isso é que ia criar a identidade do edifício”. Como se trata de um edifício de escritórios que pode mudar programaticamente, foi desenhado um sistema flexível. Porém, esse sistema também apresentava os seus desafios. Se, por um lado, esse sistema para ser flexível teria de ter muito vidro, por outro havia a necessidade de proteger a transparência.
Para além disso, o edifício estava a preparar-se para acolher “esta grande máquina flexível e eficiente do ponto de vista ecológico” e pretendia que as vivências fossem “facilmente alteráveis” de modo a resistir ao tempo com versatilidade: “Nós não podemos desenhar edifícios adequados directamente a uma função porque as funções estão sempre a mudar e os edifícios ficam logo desactualizados. Para além disso, um edifício que é muito adequado a qualquer função é algo que sacia e nós, humanos, não gostamos de ser saciados. Não tem interesse nenhum fazer edifícios que tenham essa condição de saciar. O que nós temos de oferecer e o que a arquitectura tem de oferecer são espaços que são suportes de vida com uma grande abertura”.
Em suma, a busca pela transparência e pela versatilidade foram duas das principais ideias para o projecto: “Depois também havia uma manipulação do programa que para nós foi sempre importante que era considerar que todo o edifício tivesse áreas exteriores”. Para concretizar isso “colocámos varandas que olham para o rio, varandas que olham para a cidade, varandas que olham para dentro e varandas que olham para fora para ir criando áreas exteriores”.
A pensar numa escala mais doméstica, criou-se uma praça sombreada que passou a ser parte da cidade. Perante este cenário, compreende-se que houve a ambição de não fazer apenas um edifício de escritórios, mas também a criação de um espaço público, que procura melhorar a vida das pessoas que trabalham nos escritórios, bem como dos transeuntes que por ali passam. Ainda assente na ideia de que “o rio é um valor”, o arquitecto considera que ao “arejar a Rua Dom Luís I, está-se a abrir uma ligação clara do edifício que está a ser construído, pelo arquitecto Alejandro Aravena, também para a EDP”, que irá igualmente “usufruir dessa ligação com o rio”.
Também ligada a esta ideia de abertura à cidade, havia a percepção que os espaços de trabalho estavam a mudar. Nesse âmbito, o arquitecto Manuel Aires Mateus quis desenhar áreas mais amplas e informais, capazes de facilitar a partilha de ideias: “Interessou-nos bastante trabalhar uma mudança de paradigma, tendo em conta que estávamos perante uma empresa que deixa de ter os seus quadros a trabalhar, fundamentalmente, em gabinetes e passa a pô-los em open spaces”.
Inicialmente, houve quem mostrasse algumas reservas a esta alteração, mas posteriormente os colaboradores mudaram a percepção que tinham do espaço. “As pessoas, de um modo geral, aderiram porque o edifício, na verdade, é um edifício muito aberto. Quando falamos dessa ideia de resistir interessa-nos esta ideia de que os edifícios sejam facilmente apropriáveis. É isso que transforma a possibilidade de resistirem. Porque uma pessoa agora é aquilo, no outro dia será outra coisa”. A ideia de uma transformação e abertura ao mundo não está apenas visível nesta nova sede da EDP, mas também na história do Tejo que, segundo Valentino Capelo de Sousa, “é Lisboa antes de o ser”.
No País dos Arquitectos é um dos podcasts da Rede PÚBLICO. Produzido pela Building Pictures, criada com a missão de aproximar as pessoas da arquitectura, é um território onde as conversas de arquitectura são uma oportunidade para conhecer os arquitectos, os projectos e as histórias por detrás da arquitectura portuguesa de referência.
Segue o podcast No País dos Arquitectos no Spotify, na Apple Podcasts ou em outras aplicações para podcast.
Conhece os podcasts da Rede PÚBLICO em publico.pt/podcasts.
Se gostas de ouvir podcasts, subscreve gratuitamente a newsletter Subscrito, com novidades e recomendações para trazer nos ouvidos.