“Acupuntura urbana” e intervenções sistémicas para criar cidades mais amigas dos peões
A rede pedonal faz-se todos os dias, em microdecisões tomadas por vários intervenientes. Mas a actuação tem de ser sistémica e os municípios devem deixar de ser “máquinas de criar barreiras” para aproveitarem toda e qualquer oportunidade para melhorar a rede pedonal.
Pequenas intervenções podem abrir caminho para termos cidades mais amigas de quem anda a pé, mas a visão tem de ser integradora e a actuação sistémica. A rede pedonal, formal e informal, ou seja, “praticamente tudo” nas cidades tem de ser conectado e conveniente. Faz-se de microdecisões tomadas por quem faz planeamento urbano e gere a cidade, pelo que primeiro há que mudar a cultura instalada: os municípios devem deixar de colocar entraves para aproveitarem todas as oportunidades para melhorar a rede pedonal.
Será esta a fórmula, segundo os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO em mais uma Conversa Urbana (live streaming e podcast), uma fórmula a aplicar “todos os dias”. E a transição não se fará “de um dia para o outro”.
Filipe Moura é professor de Transportes e Vias de Comunicação no Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa e é investigador e coordenador do U-Shift, laboratório a partir do qual tem estudado a “caminhabilidade” (do inglês walkabiliy), a experiência de quem anda a pé e a actividade pedonal em Lisboa, nomeadamente na zona do Eixo Central depois da requalificação da Avenida da República, Saldanha e Fontes Pereira de Melo. A sua equipa desenvolveu uma ferramenta para aferir o quão transitável a pé é determinada zona urbana, a que chamou IAAPE, do inglês Indicators of Accessibility and Attractiveness of Pedestrian Environments. Essa metodologia mede sete indicadores, sete “cês”: conectividade, conveniência, convivialidade, conforto – entram aqui o pavimento e a iluminação, por exemplo –, conspicuidade (ou notoriedade), coexistência – com outros meios de locomoção – e compromisso (das entidades competentes na aplicação de legislação em vigor).
“O peão precisa de ter acesso a uma rede pedonal que seja conectada e que seja conveniente, ou seja que eu consiga ir de A para B e que quando vou para B aquilo sirva para alguma coisa, para realizar actividades socioeconómicas que eu precise de fazer. Depois essa rede tem de oferecer segurança. Quando eu tiver estas camadas garantidas, posso ir para o conforto. E depois para outras preocupações”, explicou o investigador.
Anabela Ribeiro, professora e investigadora em Urbanismo e Transportes na Universidade de Coimbra e uma activista da mobilidade activa e sustentável, sublinhou que a “questão de quem utiliza e para quê” é importantíssima e chamou a atenção para “as ligações pedonais entre os terminais de transporte público, desde as plataformas intermodais até uma simples paragem num determinado bairro, e as origens e os destinos das viagens das pessoas”. “Não podemos perder a perspectiva da visão sistémica, ao mesmo tempo que não podemos deixar de olhar para os pequenos detalhes, como o pavimento ou a iluminação. Muitas vezes no detalhe está o sucesso de todo o sistema”, explicou.
E o sistema é quase tudo, lembrou Pedro Homem de Gouveia. O coordenador do Plano de Acesso Pedonal de Lisboa, hoje gestor de políticas e projectos na Polis, rede de cidades e regiões europeias dedicadas à inovação em transportes, recorda que nesse processo os envolvidos rapidamente perceberam que rede pedonal era “tudo, com excepção das auto-estradas, vias rápidas, vias férreas e dos sítios onde as pessoas literalmente estão proibidas de andar”. Liga tudo o que fazemos no nosso dia-a-dia, da farmácia ao trabalho, passando pelo supermercado ou pelo sítio onde os miúdos vão jogar à bola.
Uma intervenção cirúrgica “pode abrir novos caminhos”, mas “o grosso da rede está por qualificar” na maioria das cidades.
Lisboa, exemplificou, “tem centenas de milhares de metros quadrados de passeio, mais de 9400 passadeiras, mais de 2000 paragens de autocarro, mais de 100 ruas que passam à porta de escolas. E todos os dias há centenas de pessoas a tomar decisões sobre esses passeios, essas paragens de autocarro”. Essas microdecisões fazem a rede pedonal da cidade. “E cada uma delas é uma oportunidade” para fazer mais e melhor. Sendo que, na opinião do arquitecto, “o grande desafio” é fazer com que as câmaras deixem de ser “máquinas de criar barreiras” e passem a ser “máquinas de aproveitar oportunidades”, para fazer “acupunctura urbana” e “melhorar a rede no seu conjunto”.
Por onde é que se começa? “O andar a pé é um direito que temos de garantir” e isso tem de “ficar bem claro” para todos os envolvidos. E os técnicos de urbanismo “têm a obrigação de se manter actualizados”.
Anabela Ribeiro, que coordenou recentemente o projecto Mobi-age, de promoção da mobilidade sustentável da população idosa, com estudos de caso em Coimbra e no Porto e envolvendo as universidades das duas cidades, defende que “a saúde deve ocupar um lugar central na promoção de mobilidade sustentável, nomeadamente da ‘caminhabilidade’”. “Uma pessoa que utiliza sistematicamente o automóvel para fazer uma viagem diária de 1km ou 1,5km está a perder uma oportunidade de, a custo zero, conseguir promover a sua saúde”, explicou.
No projecto Mobi-age, os idosos – “uma população que está a crescer de forma exponencial nas nossas cidades” – ouvidos pelos investigadores do CITTA, centro de investigação da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto e da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, revelaram-se “muito mais activos do que se poderia pensar”, partilhou a académica. “Utilizam tecnologia, andam a pé nas suas deslocações diárias, correm, andam de bicicleta. E pretendem ser mais activo civicamente”.
Nas entrevistas realizadas, os cidadãos ouvidos contaram que não se sentiam seguros a andar a pé, com medo de cair e/ou de ser vítimas de algum crime, nem nos transportes públicos. Nestes, lamentavam que os motoristas, regra geral, não lhes dessem mais um ou dois minutos para se sentarem antes de arrancarem.
Também em Lisboa, Pedro Homem de Gouveia percebeu numa das sessões públicas realizadas no âmbito do desenvolvimento do Plano de Acessibilidade Pedonal da cidade que os mais velhos tinham medo de cair na rua. “Mais de 90% dos idosos presentes já tinham caído na rua. E eram pessoas autónomas, que tinham chegado ali pelos próprios meios.” Confrontado com o facto de Lisboa ter milhões de metros quadrados de calçada portuguesa, um pavimento irregular e escorregadio, alvo das queixas de muitos lisboetas, o arquitecto defendeu que é preciso separar aquilo que é a “calçada artística” do resto. “O grande problema da calçada portuguesa é que é um produto artesanal que começou a ser produzido em massa, nunca foi pensada para ser posta em todo o lado, foi pensada para ser posta em praças e espaços de referência.”
Ganhos com Eixo Central requalificado
No estudo que o U-Shift do Técnico fez no Eixo Central (Avenida Fontes Pereira de Melo, Saldanha e Avenida da República), medindo “caminhabilidade”, experiência e volume de tráfego pedonal antes e depois da requalificação levada a cabo entre Junho de 2016 e Fevereiro de 2017, a primeira grande conclusão foi que “a intervenção tem de facto de ser sistémica”. “É preciso intervir em todas as dimensões para de facto pôr mais pessoas a andar naquele espaço. A outra grande conclusão é que para isto ser possível tem de ser um salto qualitativo importante. Esta correlação entre o aumento de ‘caminhabilidade’ e o número de pessoas a andar é tanto maior quanto pior se partir”, relevou Filipe Moura. Na Fontes Pereira de Melo, o fluxo de peões não aumentou assim tanto. Na Avenida da República e no Saldanha, “onde houve uma alteração de lógica de funcionamento daquele espaço público”, “aumentou brutalmente”. Já na experiência de andar a pé houve ganhos em todo o Eixo. “Aí, estamos a falar de uma fidelização do peão.”
Na sequência de projectos como este, o U-Shift está agora a apoiar a Sociedade de Reabilitação Urbana de Lisboa na avaliação do impacto que as intervenções no âmbito do Programa da Renda Acessível “possam ter no espaço urbano onde vão ser construídos os edifícios”. E, para já, os maiores ganhos nos projectos já avaliados pelo laboratório do Técnico foram “para idosos e crianças”, partilhou o investigador.
Peões versus automóvel
Sobre a coexistência dos peões com os automóveis e outros meios de locomoção na cidade Pedro Homem de Gouveia, que na Polis coordena as áreas de Segurança rodoviária e Segurança nos Transportes e de Governança e Integração e em Lisboa ainda lançou o desenvolvimento do Plano Municipal de Segurança Rodoviária – Missão Zero, defendeu a redução de velocidade máxima dos automóveis para 30km/h, como acontece já noutras cidades europeias. “Tem de se reduzir a velocidade dos carros em toda a rede. Em Paris, vão reduzir a velocidade em toda a rede viária do interior da cidade para 30km/h. Seria o equivalente em Lisboa para dentro da segunda circular e no Porto para dentro da Via de Cintura Interna.”
“Existe a ideia errada de que as pessoas são atropeladas, porque atravessam fora da passadeira – há sempre muito mais pessoas atropeladas sobre a passadeira. Existe a ideia errada de que as pessoas são atropeladas, porque atravessam com o vermelho, há sempre muito mais pessoas atropeladas com o verde para os peões. Há de facto perigo de ser atropelado, quando se anda em Portugal.”
Anabela Ribeiro acrescentou que não é possível, nem desejável, “retirar o automóvel” de um dia para o outro, porque a cidade tem de funcionar. E defendeu “uma boa política de estacionamento”. E chamou a atenção para outra questão, com menos visibilidade na maioria das discussões: a insegurança que uma mulher sente a andar a pé e/ou usa transportes públicos. A investigadora acredita que muitas mulheres andarão de carro para não serem importunadas nos transportes colectivos e lamenta que sejam um grupo sub-representado nas amostras de estudos e investigações.
Filipe Moura recordou que está para sair a Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Pedonal e considerou que, como “cada cidade tem as suas especificidades e desafios”, o documento “deverá definir formas de abordar os problemas e não fazer uma shopping list de soluções”. “Seria um erro no meu entender ir por aí”, disse, acrescentando que a tal transição de que falava Anabela Ribeiro acontecerá se houver “uma cultura de intervenção no espaço público”, algo que a ENMAP “tem de incluir”. “A visão tem de começar por cima. Quem põe o dinheiro tem de estar convencido.”
“Nós temos de criar vontade política, a vontade política constrói-se, não se espera por ela”, ressalvou, no fecho da Conversa, Pedro Homem de Gouveia.