A pandemia da (des)regulação laboral no setor dos call e contact centers
O Sindicato dos Trabalhadores de Call Center está a promover uma greve contra a precariedade, situações de assédio e falta de condições de trabalho dos profissionais de call e contact centers, cuja profissão, apesar de não reconhecida, é fundamental nesta pandemia.
Durante a pandemia de covid-19, o setor dos trabalhadores de call center e contact center tem constituído um pilar essencial para o funcionamento e manutenção da sociedade, prestando todo um cuidado dedicado a cada cidadão através de linhas de apoio, como o SNS24. As jornadas e os ritmos de trabalho extenuantes e desumanizados, aos quais estes trabalhadores se encontram sujeitos, têm contribuído para a superação das maiores crises socioeconómicas da sociedade portuguesa, e sobretudo, da atual crise sanitária. Todavia, esta mesma sociedade tem secundarizado estes trabalhadores, esquecendo-se que por trás de cada telemóvel e computador se encontra um ser humano, também ele suscetível de exploração, sofrimento e vulnerabilidade. É de salientar que, em muitos casos, estes 110 mil homens e mulheres em Portugal têm prestado atendimento em casos de saúde graves, sem que para isso possuam a formação ou informação mais adequadas.
Desde a década de 1990 que a adjudicação de serviços a empresas de trabalho temporário tem compreendido um dos flagelos que mais têm assolado o setor, sobretudo no seu papel de intermediação na contratualização, constituindo-se como um fator de precarização e flexibilização das relações laborais. Os contratos a termo, renováveis diária, semanal, mensal e anualmente, permitem que os trabalhadores possam ser descartados sem justa causa, alegando-se a extinção do posto de trabalho, o que contribui para a perpetuação da rotatividade laboral e baixos níveis de sindicalização.
A questão da segurança e saúde no trabalho tem sido desde sempre preocupante nos call e contact centers devido à elevada potencialidade que os mesmos representam em termos de riscos psicossociais, sobretudo ao nível da limpeza, iluminação, ergonomia e ventilação inadequadas. Com a pandemia e os elevados riscos de contágio, os call e contact centers tornaram-se insalubres. O distanciamento social nem sempre tem sido respeitado e a testagem diária para prevenção de casos não se verifica, permitindo que operadores infetados trabalhem em sala de atendimento.
Os consequentes confinamentos e a redução da atividade laboral presencial, resultantes da pandemia, conduziram a um crescimento do teletrabalho e do trabalho uberizado que tem vindo a afetar diferentes setores da sociedade. As mais recentes discussões e alterações na legislação laboral, nas quais se incluem, além da lei do teletrabalho, a discussão sobre o trabalho em plataformas (trabalho uberizado), têm negligenciado a maioria dos trabalhadores digitais, não tendo em conta as especificidades de cada setor. O setor dos call e contact centers não é exceção. Os mesmos têm sido afetados pela gestão e controlo algorítmico e pela inexistência de regulamentação laboral específica. Esta situação conduz à perpetuação de trajetórias de vida precárias, fragilizadas e intermitentes. A flexibilidade das relações laborais flexíveis tem permitido que a situação de (falso) trabalho independente se torne cada vez mais frequente. Os custos laborais são transferidos para o trabalhador, incluindo o pagamento da Internet e do computador, encontrando-se este completamente desprovido ou limitado em termos de acesso a proteção social no emprego e no desemprego.
Apesar de executarem uma função vital e transversal à vasta maioria das empresas e instituições estatais, os trabalhadores de call e contact center não são reconhecidos, quer nos seus direitos humanos, quer laborais, ou seja, não são considerados como uma categoria profissional pela Classificação Nacional de Profissões. Esta situação contribui para a desqualificação, vulnerabilização e desumanização das relações laborais. Para além do assédio sexual e das manifestações de preconceito xenófobo, racial e anti-LGBTQIA+, as situações de assédio moral têm aumentado em regime de teletrabalho, sobretudo através do controlo “orwelliano” algorítmico (inteligência artificial), exercido não apenas por sensores biométricos, mas, sobretudo, através da supervisão que usa as redes sociais e plataformas para esse efeito. A proibição de intervalos de trabalho para satisfação de necessidades fisiológicas inerentes a qualquer ser humano, a inexistência de pausas entre chamadas, a competitividade entre colegas por prémios de desempenho, para além da retirada do subsídio de almoço em situação de teletrabalho conduzem a um elevado nível de desgaste emocional e psicológico.
Como tal, o Sindicato dos Trabalhadores de Call Center (STCC) encontra-se a promover quatro dias de greve, a decorrer nos dias 24, 25, 31 de dezembro de 2021 e 1 de janeiro de 2022, a fim de reivindicar o reconhecimento da profissão de operador de call center, progressão salarial, contratação coletiva e a erradicação da precariedade e do falso trabalho temporário e independente. Todavia, não deverá ser esquecido o estado de vulnerabilidade psicológica destes trabalhadores que se encontra grandemente associado à escassez de oferta laboral, tornando-se extremamente difícil escapar a esta perpetuação da precariedade.
O papel do STCC tem sido preponderante, sobretudo, desde março de 2020, através da reivindicação para a transição para o regime de teletrabalho. Em 2021, a readmissão de dois trabalhadores dirigentes sindicais e um aumento salarial de cerca de 130 euros para os trabalhadores de uma empresa em Braga do setor de tecnologia compreenderam marcos históricos para o setor. Danilo Moreira, líder do STCC e trabalhador do setor há cerca de 25 anos, salienta que o papel do sindicato não se restringe apenas a lutas laborais, mas interliga-se com questões de cidadania, direitos humanos e emergência climática. Urge cada vez mais levar a cabo esta nova intervenção sindical combativa que utiliza os meios cibernéticos e/ou digitais não apenas para a realização das tarefas laborais diárias, mas para a luta por melhores condições laborais, como que num processo de desalienação.
Todavia, é crucial atentar no processo crescente de desgaste psicológico e mental dos trabalhadores que tem conduzido a um aumento exponencial em termos de baixas médicas. De facto, trata-se de questões que não são acauteladas pelas empresas e que, em situações mais extremas têm culminado em casos de morte súbita.
Neste cenário de luta diária contra o vírus da covid-19, a sociedade, as empresas e o Governo têm dependido grandemente do papel imprescindível e notável dos operadores de call e contact center. Todavia, num cenário de sofrimento, assédio moral e despedimentos em massa, sobretudo em linhas de atendimento de saúde em que os próprios trabalhadores não são protegidos, será que estes trabalhadores poderão contar com a solidariedade da sociedade, dos utentes e do Governo em termos do reconhecimento do seu setor como profissão e ver as suas reivindicações atendidas?
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico