Associação de críticos de arte sai em defesa da liberdade criativa e do juízo crítico
Numa altura em que a polémica em torno da escolha do artista que representará Portugal na Bienal de Arte de Veneza continua a fazer correr tinta, um comunicado subscrito por mais de cem figuras do meio cultural lembra que a criação artística não deve subordinar-se a “outras agendas senão aquelas que os artistas para si definem”.
A Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA) saiu a público esta quinta-feira em defesa da “liberdade criativa” e do “juízo crítico.” Em nenhuma passagem do documento enviado às redacções é feita referência à polémica em torno da escolha do representante de Portugal na próxima Bienal de Arte de Veneza, mas é claramente esse o contexto do documento que agora foi revelado.
O comunicado lembra que “a criação artística vive sempre de tensões entre as circunstâncias sociais, políticas, culturais e, necessariamente, estéticas do seu tempo”, e sublinha que esses processos têm de ser livres, “não podendo estar dependentes de outras agendas senão aquelas que os artistas para si definem, certamente decorrentes das suas visões sobre a arte e o mundo”. Da mesma forma, enfatiza a AICA, é “essencial que o juízo crítico se exerça livremente, tanto o do público como o juízo que é proferido de um ponto de vista particular, o do especialista – seja crítico, curador ou responsável de instituição cultural que, por natureza, tem de efectuar juízos, escolhas e mediações”.
A AICA aponta “pressões sobre os artistas e as instituições, os críticos e os mediadores para corresponderem a agendas específicas e a elas cingirem as suas escolhas num exercício de autocontenção e mesmo censura”, e defende que “o juízo crítico deve reivindicar permanentemente a sua liberdade” e, ao mesmo tempo, “o seu carácter relativo e a sua subjectividade, porque (...) não se pode reivindicar de qualquer representatividade política sob pena de encarnar o mais perigoso autoritarismo”. Mas “esta liberdade crítica não implica, claro está, qualquer alheamento das questões do mundo: pode e deve delas estar consciente e partir de um ponto de vista, informado, consciente e assumido – e, portanto, debatível”.
A AICA Portugal, de cuja direcção fazem parte Ana Tostões, Sandra Vieira Jürgens, Pedro Baía, João Belo Rodeia e Catarina Rosendo, “repudia veementemente quaisquer derivas autocráticas, moralistas ou pretensamente representativas e afirma a necessidade de se manter um espaço público colectivo e livre para o exercício do pensamento e das práticas artísticas”.
O documento foi já subscrito por cerca de uma centena de figuras do meio cultural, como os artistas João Louro, Ana Vidigal, Francisco Vidal, Rui Chafes, Pedro Calapez, Pedro Tudela, Jorge Molder ou Gustavo Sumpta, a galerista Vera Cortês, o programador António Pinto Ribeiro, a filósofa Maria Filomena Molder, os curadores Bruno Marchand, Jesse James, Filipa Ramos, Inês Grosso, João Pinharanda, Pedro Lapa, Marta Mestre e Delfim Sardo, jornalistas como Clara Ferreira Alves, as historiadoras Dalila Rodrigues ou Raquel Henriques da Silva, o presidente da Fundação Centro Cultural de Belém Elísio Summavielle ou arquitectos como Gonçalo Byrne, João Luís Carrilho da Graça, Manuel Aires Mateus, João Mendes Ribeiro ou Inês Lobo.
Recorde-se que o curador Bruno Leitão, que propôs a concurso para representar Portugal em Veneza a artista Grada Kilomba, entregou ao Ministério da Cultura um recurso hierárquico pedindo a revisão do processo de selecção de que saiu vencedor Pedro Neves Marques. O curador coloca em causa o método e os critérios de avaliação e também as justificações de um dos jurados, o crítico de arte do PÚBLICO e professor universitário Nuno Crespo, acusado de “boicotar” o projecto da artista Grada Kilomba ao atribuir-lhe uma baixa pontuação, o que acabou por neutralizar a classificação elevada proposta pelos restantes três elementos do júri.
Dias depois de Bruno Leitão ter formalizado o recurso hierárquico, surgiu uma carta aberta em defesa de Grada Kilomba, juntando uma centena de personalidades nacionais e internacionais e duas dezenas de associações portuguesas, algumas delas ligadas ao movimento anti-racista. “Apoiamos o recurso hierárquico submetido pelo curador Bruno Leitão e exigimos uma revisão da avaliação deste concurso justa, fundamentada e transparente”, lê-se na missiva, subscrita e apoiada por figuras como o sociólogo Boaventura Sousa Santos, a deputada Beatriz Gomes Dias, a curadora Catherine Wood, da Tate Modern, o director da Pinacoteca de São Paulo Jochen Volz, ou os artistas Kader Attia e Leonor Antunes.