Para Alexandre Silva, ir à lota foi uma necessidade. Hoje é um vício

Se o tempo permite a saída dos barcos para o mar, duas vezes por semana, Alexandre Silva troca as bancadas da cozinha do Loco e do Fogo pela bancada do leilão de peixe na Lota de Peniche. Já lhe ofereceram dinheiro para abandonar esse papel de chef peixeiro, mas é tempo perdido. O chef não desiste de dois pressupostos: apresentar aos clientes espécies de peixe na altura certa e com a maior frescura possível, e reduzir a despesa dos seus restaurantes.

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Alexandre Silva na lota Daniel Rocha

Alguém que acompanhe o trabalho de um chef com estrelas Michelin imagina-o exclusivamente focado no processo criativo, de forma a manter ou conquistar mais estrelas. O que dificilmente concebe é que haja um chef com uma estrela Michelin que se encarregue de ir à lota comprar o peixe que usa nos seus restaurantes. Não falamos de uma ida à lota uma vez por outra ver e compreender o ambiente frenético, confuso e fascinante. Falamos de alguém que, de há quase dois anos para cá, vai duas vezes por semana à lota. E que, na bancada, é só mais um entre dezenas de compradores donos de códigos e comportamentos que só com muita tarimba se deslindam. Esse chef é Alexandre Silva, do Loco (1 estrela Michelin) e do Fogo, ambos em Lisboa. Chef peixeiro é um título que lhe fica bem.

“Tudo isso começou durante a pandemia, como uma necessidade de redução dos custos, mas sem perder qualidade. A partir daí ganhei o gosto de vir à lota e isto passou a ser um vício. Gosto de fazer o leilão e de ver os peixes. E percebi que é uma mais-valia para o restaurante”, diz-nos o chef apaixonado por tudo o que tem a ver com o mar. “Não é só poesia. É preciso ter muita atenção, conhecer alguns truques e gerir sensibilidades.”

Tomar o pulso à lota

São 14h30 de uma quarta-feira e Alexandre Silva fala com a equipa do Público no cais de acostagem da lota de Peniche, onde, ao longo de horas chegam e partem largas dezenas de embarcações com diferentes artes de pesca (arrastões, redes, linhas e canas), num movimento impressionantemente ordeiro, muito rápido, mas que nos transmite a sensação de estarmos a sentir o tempo a duas velocidades: em terra e à distância, tudo funciona a passo normal; na baía e no molhe, tudo anda em fast motion. É difícil acompanhar tanto movimento.

Ainda assim, o chef concentra-se na conversa, mas com atenção a determinados barcos que se aproximam. E isto porque as suas decisões de compra começam logo no olhar que deita à carga de alguns. “Alguns” porque, ao fim de muitos meses, sinalizou quais os barcos que têm as artes que lhe garantem melhor qualidade de pescado a partir dos seguintes parâmetros: sustentabilidade das espécies, sistemas de captura e forma de tratar o peixe a bordo.

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De resto, durante a tarde, Alexandre chamou-nos a atenção para a forma irracional como muitos pescadores ainda tratam as espécies, ora arremessando os exemplares contra as caixas ora atirando pazadas de gelo para cima dos peixes, quando poderiam, à semelhança do que se faz nalguns portos e do que ele próprio faz nos seus restaurantes, usar películas de cobertura dos peixes antes de se colocar o gelo por cima, gesto esse que protegeria a pele e prolongaria a integridade do peixe no tempo.

Ao longo de todo este tempo de ida às lotas, o que aprendeu o chef? “Aprendi que, muitas vezes, somos enganados, principalmente nas artes de pesca, porque algum peixe que se diz ser capturado por embarcações de pesca artesanal é, quando o mar está mau, capturado por arrastões”. É só um exemplo.

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Chega um barco, descarrega rapidamente, zarpa e entra outro. Alexandre vai memorizando a carga deste ou daquele para, depois, durante o leilão, fazer licitações a partir dessa mesma carga. É preciso ter muita atenção, memória e reflexos rápidos. E insiste na ideia de que “um barco não é só o barco. É o barco, as pessoas que trabalham nele e a forma como tratam o peixe.” E o seu desejo é que os clientes dos restaurantes Loco e Fogo sintam que estão a comer peixe que foi manuseado com o maior rigor possível desde o momento da captura.

Compreender os códigos

Já fez amigos entre a comunidade piscatória? “Não, infelizmente não. São pessoas muito fechadas e bairristas”. Aliás, este é um universo peculiar, onde um chef que compre directamente o peixe não é bem visto pelos tradicionais intermediários. Em Peniche, como se trata da maior lota do país e com o maior número de compradores, Alexandre Silva passa despercebido, mas, em Sines, já houve gente “a mandar vir e até a oferecer dinheiro para me ir embora”. Uma lota não é propriamente o local ideal para se fazer amigos, mas Alexandre faz questão de sublinhar que Tiago, o seu antigo fornecedor, “é alguém sempre disponível” para o “ensinar e ajudar”.

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Comprar peixe em lota tem que se lhe diga, porque entre o visionamento do peixe nas caixas, a interpretação dos códigos que aparecem no ecrã e a decisão de compra no meio de dezenas de intermediários, tudo decorre com uma rapidez impressionante. Foi por isso que, no início, cometeu erros, tendo chegado a comprar 30 quilos de linguado minúsculo quando não era isso que queria. Foi José Cardoso, da Tasca do Celso, quem ajudou Alexandre a compreender o ecossistema de uma lota.

Mas se interpretar correctamente os códigos definidos pela Docapesca é uma questão de tempo, compreender os códigos dos compradores é algo que não se atinge com um conjunto de perguntas que preencha uma folha A4. Já temos alguma tarimba em lotas para dizer que estamos perante um universo hermético, com uma linguagem própria e em que o silêncio, a manha ou o rol de dichotes são as armas do negócio. E se falarmos na velha questão da especulação entre o valor em lota e o valor pago pelo consumidor, a conversa azeda de imediato. O interlocutor ora vira-nos as costas, ora desata a elencar impostos, “taxas e taxinhas”, níveis de risco e as tradicionais perdas que existem durante todo o processo (o que é verdade).

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O preço do peixe está, como se sabe, pela hora da morte. E daqui em diante a tendência é continuar a subir. O valor das espécies que passaram nos ecrãs variaram em função de tamanhos, artes de pesca e graus de frescura, mas, na tarde de 15 de Dezembro, vimos sargos arrematados a €6,28 o quilo, raia a 5€, cação a €7, sarrajão a €5,80, robalo de anzol a €27, salmonete a €23,40, polvo a €9,50, besugo a €5, carapau a €3,26, corvina a €13,29 e salemas retiradas porque ninguém as queria. Entre estes valores e os preços finais que os consumidores terão de pagar é o que se sabe – o reino de especulação.

O chef Alexandre aprendeu a gostar do mar com o pai, acha que o peixe é mais desafiante do que a carne, adora o ritual da lota e cultiva o princípio do peixe fresco na altura certa, seja um cherne, uma faneca ou um carapau (para o Fogo ou para o Loco), mas, como é evidente, tal trabalho tem de justificar-se. Como? “Através da redução da factura do custo do peixe em 50 por cento”, diz-nos. Nada mau.

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