Buscas e salvamento no Mediterrâneo: “Descrevem a Líbia como um inferno”

Muitos dos menores não-acompanhados resgatados no Mediterrâneo pelo navio de buscas e salvamento da Médicos Sem Fronteiras, o Geo Barents, escaparam de tortura e exploração.

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Julie Melichar a bordo do "Geo Barents" Pablo Garrigos/ MSF

Agora estão a brincar, sorriem e fazem amizade uns com os outros, parecem-se como qualquer outro jovem da idade deles. Mas já não são apenas crianças ou adolescentes – não depois daquilo por que passaram.

São os mais jovens dos sobreviventes resgatados pela Médicos Sem Fronteiras (MSF) no Mediterrâneo central, em menos de dois dias de operações pelos finais de Outubro, quando as equipas da organização médico-humanitária a bordo do navio de buscas e salvamento Geo Barents salvaram 367 pessoas – mais de 40% com menos de 18 anos e 140 a viajarem sozinhos.

Um tão elevado número de jovens a arriscarem a vida na travessia do mar Mediterrâneo – considerado uma das rotas de migração mais mortais no mundo – é, já por si, alarmante. Mas fazê-lo sem a mãe ou o pai ou um adulto de confiança torna os menores não acompanhados num dos grupos mais vulneráveis entre as populações em movimento.

Sem o apoio de adultos em quem possam confiar, estas crianças e adolescentes enfrentam riscos de protecção especiais e muito significativos. São presas fáceis dos traficantes de pessoas, contrabandistas, abusadores e exploradores. Nas suas viagens arriscam-se a serem submetidos a trabalho forçado, extorsão, detenções arbitrárias e violência física, incluindo violência sexual.

Estes jovens embarcam nas suas jornadas por uma miríade de razões. Em muitos casos, fogem de países devastados por guerra, ou de perseguição, pobreza extrema, violações de direitos humanos e limitado acesso a educação e serviços de saúde. Muitos dos menores resgatados naquelas operações do Geo Barents eram oriundos da Somália, Eritreia, Mali e Camarões.

Um dos rapazes que salvámos das águas recentemente tinha apenas 12 anos quando partiu do seu país. Contou-nos que o pai tinha sido morto porque quis protegê-lo de ser recrutado à força para o exército. A mãe não viu outra escolha se não a de o mandar para longe, para o salvar do recrutamento forçado. Descreveu ainda que, quando chegou ao Sul da Líbia, foi mantido em cativeiro e torturado durante sete meses até conseguir escapar.

Qualquer que seja a razão para partir dos países de origem, a Líbia é o ponto a partir do qual não há retorno. Na Líbia há um sistema para extorquir dinheiro às pessoas em movimento. Muitos migrantes e refugiados são raptados e mantidos cativos por milícias e grupos armados. Quem tem dinheiro, pode comprar a liberdade; quem não o tem é torturado ou obrigado a fazer trabalho forçado até que as famílias ou amigos consigam pagar pela libertação. Esta espiral de exploração pode arrastar-se durante meses, até mesmo anos.

Crianças e adolescentes não são poupados a estas atrocidades. Muitos dos jovens que resgatámos do mar contaram-nos que escaparam a detenções arbitrárias, a abusos e a exploração na Líbia. Alguns enfrentaram a perda de amigos ao longo das suas jornadas, uma vez que muitas pessoas desaparecem ou são mortas na Líbia. Um rapaz contou-nos que estava a viajar com cinco amigos próximos e que todos morreram em centros de detenção na Líbia – e então viu-se sozinho. Explicou-nos que começou a criar problemas e a gritar de propósito, querendo que os guardas o espancassem e matassem, para poder juntar-se aos amigos. Isto é já demasiado para qualquer ser humano enfrentar. Como pode tal coisa acontecer a crianças?

A equipa médica da MSF a bordo do Geo Barents providencia cuidados básicos de saúde, assim como apoio psicológico a todos os sobreviventes resgatados pela organização médico-humanitária. E é crucial que estas pessoas continuem a receber cuidados quando chegam a terra.

Muitos dos menores não acompanhados a bordo do navio da MSF parecem lidar muito bem com o facto de estarem no Geo Barents. Criam juntos uma comunidade, tornando-se amigos uns dos outros e comportam-se como qualquer outro adolescente. Mas sabemos que têm cicatrizes profundas dentro deles que não vão curar-se sozinhas. É por esta razão que um grupo de pessoas tão vulneráveis não pode ser esquecido quando chega a terra. Tem de lhes ser proporcionada protecção especializada, têm de receber abrigo seguro adequado às necessidades próprias das crianças e serviços médicos e psicológicos prestados por organizações competentes.

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