Comissão abre a porta à reclassificação de 5,5 milhões de trabalhadores das plataformas
Nova directiva prevê a presunção de um vínculo laboral entre empregador e empregado quando as plataformas organizam e supervisionam o trabalho, determinam a remuneração ou interferem na apresentação dos trabalhadores ao público. Medida representa 4,5 mil milhões de euros de custos adicionais para as empresas e 484 milhões de euros de salário adicional para os trabalhadores.
A aprovação da proposta de directiva para a melhoria das condições dos trabalhadores das plataformas digitais poderá resultar na reclassificação de 5,5 milhões de pessoas que estão actualmente a prestar serviços a empresas como a Uber sob o estatuto de independentes, que poderão passar a ser tratadas como funcionários assalariados, com os mesmos direitos laborais e de protecção social de todos os trabalhadores por conta de outrem.
“As pessoas que trabalham na economia das plataformas merecem condições de trabalho dignas e o mesmo nível de protecção social que os restantes trabalhadores”, declarou esta quinta-feira o vice-presidente executivo da Comissão Europeia, ao apresentar a proposta legislativa, que foi desenhada tendo em conta a jurisprudência nacional e europeia dos mais de mil casos que chegaram a tribunal para contestar o estatuto laboral de pessoas a trabalhar em plataformas.
Se o Parlamento Europeu e os Estados-membros validarem a proposta, os governos nacionais terão um prazo de dois anos para a sua transposição. “As coisas não vão mudar de um dia para o outro”, admitiu uma fonte da Comissão Europeia. Mas com a entrada em vigor da directiva, as empresas poderão ter custos adicionais de 4,5 mil milhões de euros — um valor que explica a forte oposição que existe à proposta, embora o comissário europeu para o Emprego e Direitos Sociais, Nicolas Schmit, tenha constatado que “algumas plataformas importantes” já exprimiram o seu apoio (embora não seja o caso da Uber).
Pelos cálculos de Bruxelas, actualmente existem 28 milhões de pessoas a fornecer serviços às mais de 500 plataformas digitais operacionais na UE — e esse número deverá crescer rapidamente para 43 milhões até 2025. “Esta economia está a crescer e estamos todos interessados em promover este crescimento, que é baseado no aumento da procura”, observou Nicolas Schmit.
Porém, prosseguiu o comissário, “não há nenhuma razão para que o modelo de negócio digital não se enquadre no nosso pilar social, e nenhuma razão para que as plataformas não cumpram as mesmas obrigações das restantes empresas que operam no mercado único”, justificou Nicolas Schmit. “Esta também é uma questão de concorrência leal”, acrescentou.
Cerca de 80% dos trabalhadores das plataformas serão “genuinamente” profissionais independentes, com autonomia real e poder de decisão individual sobre o seu horário e local de trabalho ou o valor de remuneração dos seus serviços. “A nossa proposta não põe em causa esse estatuto, nem acaba com a flexibilidade, que de resto vigora em vários sectores como o retalho, a hospitalidade ou o turismo”, garantiu o comissário.
Mas outros 20% trabalham sob o controlo efectivo das plataformas, que determinam como o trabalho é organizado e supervisionado, como os salários são calculados, ou mesmo como os trabalhadores se devem apresentar ao público. A proposta de directiva fixa uma lista de cinco critérios, e determina que nos casos em que pelo menos dois deles se verificam na relação entre a plataforma e os trabalhadores, passa a haver uma presunção de ligação contratual (ou de laboralidade) em que a primeira é classificada como “empregador” e os segundos como “empregados”, a quem têm de ser garantidos todos os direitos laborais e sociais inerentes.
Ou seja, as pessoas que forem reclassificadas como trabalhadoras passarão a ter direito ao salário mínimo, negociação colectiva, tempo de trabalho, férias remuneradas, protecção da saúde e contra acidentes de trabalho, subsídio de desemprego e ainda a uma pensão de reforma contributiva. Segundo a avaliação do impacto da medida divulgada pela Comissão, a reclassificação resultaria em cerca de 484 milhões de euros de salário adicional para os trabalhadores das plataformas, ou 1280 euros por pessoa.
As plataformas terão o direito de desafiar judicialmente esta presunção e refutar a reclassificação, provando em tribunal que os critérios não se verificam e portanto não pode ser estabelecido o vínculo ou relação laboral com o trabalhador. Alternativamente, poderão alterar as suas regras de funcionamento, para garantir que recorrem a prestadores de serviços que são efectivamente trabalhadores independentes.
Além da definição do estatuto dos trabalhadores, a nova directiva também introduz mudanças na gestão algorítmica dos recursos humanos, que segundo o executivo comunitário traz ganhos de eficiência e produtividade, mas também resulta em “más decisões”, por exemplo de responsabilização e penalização, ou no atropelamento de direitos dos trabalhadores. Assim, os trabalhadores (assalariados ou independentes) passarão a ter o direito de contestar decisões automatizadas, enquanto as plataformas terão de avaliar o impacto dos sistemas algorítmicos sobre os trabalhadores.
Em qualquer dos casos, a Comissão considera que as novas regras, que assentam em critérios claros e objectivos, vão contribuir para uma maior segurança e certeza jurídica das plataformas e dos trabalhadores, e uma redução dos custos de contencioso. Neste momento, há centenas de casos em tribunal em vários Estados-membros da UE.
Portugal já deu passos que vão no sentido determinado pela directiva. As alterações à legislação laboral propostas pelo Governo, e que entretanto ficaram comprometidas por causa da dissolução do Parlamento, abriam a porta ao reconhecimento de que as pessoas que prestam serviços através de plataformas digitais podem ser consideradas trabalhadores de empresas como a Glovo ou a Uber.
A proposta de lei determinava “a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de actividade e o operador de plataforma digital se verifiquem algumas das características” de laboralidade.
Na dimensão relativa à relação entre o prestador e a plataforma eram tidos em conta indícios como a fixação da retribuição para o trabalho efectuado; o controlo em tempo real da actividade através de geolocalização contínua ou de algoritmos; a plataforma ter poder disciplinar sobre o trabalhador ou poder excluí-lo de futuras actividades por ter avaliação insuficiente.
Já na relação entre o prestador e o consumidor era valorizado o facto de o operador de plataforma fixar o preço pago pelo consumidor; o processamento do pagamento dos clientes não ser feito por quem presta o serviço; o prestador não actuar em nome próprio; a comunicação com os clientes não ser gerida pelo prestador do serviço e, finalmente, a plataforma partilhar com os clientes a avaliação dos trabalhadores.
De acordo com os especialistas consultados pelo PÚBLICO, para que se prove que estas pessoas são trabalhadores das plataformas deverão identificar-se pelo menos quatro destes indícios.