Mercenários russos “assumiram o comando efectivo” do exército da República Centro-Africana
Grupo próximo de Kremlin tem aumentado influência em África.
Mercenários russos “assumiram o comando efectivo” de, pelo menos, um batalhão das forças armadas da República Centro Africana (RCA), treinado pela União Europeia, segundo um relatório que fundamentará a decisão de prolongamento da missão da UE no país.
“Actualmente, a maior parte das unidades das Forças Armadas Centro-Africanas (FACA) deslocadas no terreno estão a operar sob comando ou supervisão directa dos mercenários do Wagner Group (WG)”, uma empresa privada de segurança russa ligada ao Kremlin, afirma um relatório enviado no final de Novembro ao Conselho Europeu e elaborado pelo Serviço de Acção Externa Europeia, sobre o Ambiente Político e Estratégico da missão de política comum de segurança e defesa na RCA.
O relatório servirá de base à decisão do Conselho Europeu, a ser tomada no início do próximo ano, de prolongar ou não as actuais missões europeias de Treino Militar (EUTM) e de Aconselhamento (EUAM) no país.
O recém formado Bataillon d"Infanterie Territoriale (BIT 7), treinado pela EUTM, “é o último, mas crítico, exemplo da capacidade de agir do WG, de acordo com as suas necessidades e em total impunidade”, acusa o texto dos serviços externos europeus. Ao BIT 7 deverão juntar-se os BIT 8 e BIT 9, cuja constituição foi recentemente admitida pelo Estado-Maior das FACA.
O Wagner Group “goza de uma sólida influência sobre o Comando Geral das FACA e outras instituições governamentais, bem como através de indivíduos junto da liderança da Assembleia Nacional”, para além de que “as relações de comando e controlo entre as unidades destacadas das FACA e o seu respectivo Estado-Maior General são extremamente fracas”, afirma o relatório.
“O conteúdo do relatório não surpreende”, disse à Lusa Enrica Picco, directora para a região da África Central do Internacional Crisis Group (ICG). “Mostra, mais uma vez, a falta de coordenação do ponto de vista da ajuda militar ao país”, acrescentou.
“Era inevitável que as FACA deslocadas no território viessem a ser comandadas pelo WG, uma vez que, do ponto de vista militar, são eles que estão a dirigir as ofensivas. São quem está no terreno. O Estado-Maior das FACA está em Bangui e quem está no terreno são os russos”, reforçou a investigadora.
A situação de fraca ou inexistente relação de comando na hierarquia militar centro-africana é “frequentemente explorada por mercenários do WG, que assumem os comandos no terreno e utilizam as FACA nas suas próprias operações” - nomeadamente a depredação das riquezas minerais do país, como diamantes e ouro, ainda que não especificadas pelo texto -, “com a participação da RCA através do acordo ou aquiescência passiva das autoridades do país”, acusam os serviços europeus.
“O actual padrão de implantação dos activos do Wagner Group (...) cobre todas as partes vitais no oeste e centro da RCA, com prioridade para áreas de mineração economicamente importantes, a fim de assegurar investimentos do Wagner Group através da Lobaye Investment Company”, afirma ainda o relatório da UE.
A Lobaye, mencionada no texto, é uma empresa mineira de direito centro-africano, mas era efectivamente dirigida até há pouco tempo por Yevgeny Khodotov, um oficial russo de São Petersburgo, de onde é também natural o Presidente Vladimir Putin.
“Elementos russos também começaram a incorrer nas vastas reservas naturais/áreas de protecção ambiental no leste da RCA como Chinko (...) para fins ainda desconhecidos”, afirma ainda o relatório.
“Não disto é novo”, afirmou igualmente à Lusa um diplomata ocidental a coberto do anonimato. “Acho que este relatório sai agora para se criar um contexto e justificar decisões políticas que se avizinham, mas no terreno toda a gente sabe que as FACA são comandadas directamente pelo WG; é do conhecimento comum já há algum tempo, até por sucessivas notícias de vários incidentes”, acrescentou a mesma fonte.
O mesmo diplomata acrescentou que “também toda a gente sabe que eles [os russos] controlam minas de ouro e diamantes. O que é difícil de provar é que estão a depredar os recursos naturais e como estão a colocar esses recursos nos mercados internacionais. Isso é outra história. Mas que controlam militarmente as áreas ricas em recursos naturais, é do conhecimento comum”, acrescentou.
O relatório dos serviços externos europeus afirma ainda que, para além de conduzir operações contra os grupos rebeldes activos no país, “o WG está também a treinar as FACA de forma não transparente. Ao mesmo tempo que insiste continuamente na qualidade superior do apoio da Rússia, está a fornecer formação adicional às unidades já certificadas pela EUTM na RCA”, acusam os autores do relatório.
Enrica Picco sublinha que se chegou à actual situação por “culpa” dos líderes ocidentais, “porque o Estado centro-africano pedia há vários anos que lhe fosse proporcionada uma capacidade militar que não tinha”.
“O Wagner Group ofereceu a solução militar que Bangui procurava”, acentuou a responsável do ICG. “E agora? Perante a evidência de que o Estado centro-africano precisa de apoio militar, que encontrou junto do WG, está a UE em condições de oferecer ao Estado centro-africano um apoio militar mais musculado, inclusive mais forte do que o apoio da Minusca?”, interroga a especialista.
O Serviço de Ação Externa Europeia admite que “o estabelecimento de uma forte presença” russa e do Wagner Group na RCA, com forte influência no poder de decisão em Bangui, colocou atores internacionais como a missão das Nações Unidas no país (MINUSCA), mas também as missões da UE, “num ambiente mais complexo”, pelo que “será necessário apoiar o governo da RCA na procura de opções para enfraquecer esta influência, propor alternativas viáveis e monitorizar se isto conduzirá a ações concretas”.
Neste sentido, o relatório sustenta que a revisão estratégica da EUTM e da EUAM na RCA deve ir no sentido da continuação das mesmas, mas com condições: “O posicionamento futuro do governo da RCA em relação às operações do WG/FACA, incluindo violações dos direitos humanos do direito internacional humanitário; a implementação dos objectivos comummente definidos do Plano Nacional centro-africano de Defesa (PDN); e a influência da Rússia sobre as forças de segurança interna [polícia e forças paramilitares] terão de ser acompanhados e avaliados de perto”, sustenta o texto.
Se a revisão estratégica apontasse no sentido da diminuição do apoio europeu, “haveria consequências, desde logo do ponto de vista dos direitos humanos”, disse o diplomata europeu. “Podíamos sempre decidir que o dinheiro dos contribuintes europeus não seria utilizado num cenário como este, mas as consequências seriam ainda mais nefastas”, acrescentou.
Portugal tem deslocados na RCA 20 militares no âmbito da EUTM e outros 188 no âmbito da MINUSCA.
A RCA caiu no caos e na violência em 2013, depois do derrube do ex-Presidente François Bozizé por grupos armados reunidos no agrupamento político-militar Séléka, o que suscitou a oposição de outras milícias, agrupadas sob a designação anti-Balaka. Bozizé dirige atualmente o mais poderoso grupo rebelde centro-africano, a Coalition of Patriots for Change (CPC).