Crise: nome feminino, plural

Mais do que um estado de alerta, o país atravessa agora um estado de emergência social, em que lutas partidárias internas e caprichos parlamentares são tidos como prioritários relativamente às reais necessidades dos cidadãos.

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Daniel Rocha

Enquanto jovem, passei grande parte da minha vida a ouvir falar em crise. Acontece que, estando já bastante familiarizado com a palavra no singular, não deixa de ser curioso o facto de a conjuntura actual se poder caracterizar pela mesma palavra, mas no plural. De facto, a situação que o mundo, e, em particular, o país atravessam é de extrema singularidade, gravidade e exigência para todos os cidadãos.

Estamos nós à beira de uma crise política, prestes a ficar sem Parlamento e perante um Presidente da República que se baseia em exemplos do passado para resolver um caso sem precedentes? Estamos nós perante uma direita que, diariamente, se autodestrói à boleia de lutas internas e perante uma esquerda que não sabe o que quer? Estamos nós perante líderes mundiais incapazes de resolver as crises migratória e climática? Enumerando as situações desta forma poderá parecer exagero, mas não é. Como se não bastasse, uma nova trajectória ascendente do número de casos de covid-19 em Portugal tem vindo a verificar-se, o que faz com que estejamos, assim, perante várias crises que, simultaneamente, colocam em causa a estabilidade da democracia, da saúde pública e da economia.

Quando tudo parecia apontar para uma trajectória positiva no combate à pandemia, a verdade é que o país atravessa agora uma página negra na história desta legislatura, não só por motivos de saúde pública. Se seria mais fácil apontar o dedo à evolução natural dos acontecimentos pandémicos, a realidade é que são muitos os intervenientes que têm contribuído para que o futuro próximo não seja nada fácil para os portugueses. Mais do que um estado de alerta, o país atravessa agora um estado de emergência social, em que lutas partidárias internas e caprichos parlamentares são tidos como prioritários relativamente às reais necessidades dos cidadãos.

Nesse sentido, interrogo-me profundamente acerca da agenda e objectivos de certos partidos políticos ao decidirem priorizar uma conduta tacticista, dada a conjuntura actual. Como paradigma, o já suficientemente falado chumbo do Orçamento do Estado, protagonizado por uma maioria dos deputados, na qual se incluem alguns eleitos à esquerda (os mesmo que permitiram a ex-gerigonça). Uma crise, dado o actual quadro social, não era de todo desejável. No entanto, talvez o adjectivo que melhor se aplica seja mesmo “incompreensível”, perante o quadro de crescimento que o país tem verificado, apesar da pandemia, com o PIB a crescer 4,2% face ao ano anterior e a taxa de desemprego a ser a mais baixa dos últimos 20 anos.

Portugal e grande parte dos actores políticos portugueses parecem longe de estar preparados para colocar o interesse do país à frente das suas ideologias e pretensões partidárias. Certamente que todos os portugueses sensatos percebem que este não era o momento para provocar uma crise política, se é que tais ocasiões existem. Tenhamos, então, a noção de que, se atitudes inconscientes levam a uma proliferação do vírus que nos assola há quase três anos e, consequentemente, a um adensar de uma crise social, também comportamentos irracionais num quadro político contribuem para o mesmo fenómeno. Eis a hora de repartir responsabilidades e relembrar que os agentes políticos não lhes são imunes.

Por outro lado, responsabilidades congéneres se podem atribuir no actual quadro de crise climática e migratória. Mesmo perante as evidências científicas, o acordo final que saiu da COP26 permitiu cedências que tornam cada vez mais utópico o objectivo de manter o aumento da temperatura do planeta nos 1,5 graus Celsius. A pressão de última hora feita pela Índia tirou do pacto climático a eliminação do carvão, substituindo-o por uma redução progressiva, o que pode significar um aquecimento global de dois ou mais graus Celsius. Este pode vir a traduzir-se num degelo do Árctico dez vezes pior ou em ondas de calor três vezes mais severas. Apesar de tudo isto, há mesmo quem entenda os factos como “boas notícias”, nomeadamente Paulo Rangel, que assim o escreveu no seu Twitter. Quem sabe se não estará demasiado focado no “aquecimento” interno do seu partido e tenha perdido e noção da realidade.

Por fim, e não menos importante, no que à crise migratória diz respeito, na minha opinião os líderes mundiais devem, sem dúvida, priorizar uma convergência de ideias, bem como um plano de acção que vise reverter a situação de forma rápida e eficaz. A título de exemplo, a situação da crise migratória afegã em que, a cada dia que passa, vidas se perdem e a cada apelo que se faz nenhuma é efectivamente salva. Eis a altura de passar do apelo à prática e promover de forma activa o acolhimento de refugiados, processo no qual Portugal se deve posicionar na dianteira, uma vez que é possível acolher um número mais elevado de migrantes do que as cerca de três centenas actuais. Ainda assim, este é um balanço positivo quando comparado com as realidades russa, suíça e austríaca, que logo em Agosto fecharam portas aos refugiados.

Resta-me concluir que a situação que enfrentamos actualmente se baseia no velho provérbio “Um mal nunca vem só”. Se se pedia uma convergência de ideias políticas até há bem pouco tempo, a realidade é que a única convergência que parece ter existido foi a de um leque bastante vasto de crises. Talvez esteja na hora de pedirmos ao Pai Natal que nos deixe sensatez e estabilidade no sapatinho.

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