O aborrecimento de Beatrix

Depois de galardoado nos festivais de cinema Viennale e FIDMarseille, nada é mais vibrante do que ver as imagens de Beatrix em fricção umas com as outras, como se de um notebook de feminilidade se tratasse. E um ansioso por se interligar.

Foto

Beatrix está sozinha em casa. É Verão. Sem saber o que fazer consigo mesma, preenche os dias com actividades que evidenciam o tempo que vai passando por ela em vez de ser absorvido. Rega o jardim, lava a loiça, alimenta o gato, vê televisão de pijama, mas também se baloiça numa bola de pilates vermelha, enfia a mão no saco do aspirador quando o electrodoméstico começa a fazer um barulho de protesto ou fica simplesmente a olhar para o abajur que cobre a lâmpada que cai do tecto da sala. Numa sucessão de movimentos destes, podemos dizer que a jovem adulta atinge o auge do aborrecimento. E quanto mais focada está na potência do movimento que tem perto de si para activar menos focada estará nas muitas questões que assombram a primeira longa-metragem de Lilith Kraxner e Milena Czernovsky: Quem é Beatrix? O que é que ela está a fazer? Porque é que tudo isto importa? Enquanto não obtemos uma resposta, vemo-la a debruçar-se nos detalhes escondidos do mundo em redor.

Felizmente encontrado na Competição Internacional do Porto/Post/Doc, nos próximos dias 24 e 26 de Novembro, no Teatro Rivoli, Beatrix é verdadeiramente um documento que se reduz à qualidade de um rebuçado de cinema contemplativo. E um que fala pelas mulheres mais do que qualquer manifesto, porque as capta num espaço de conforto, desprotegido. Entre a loquaz fórmula fílmica de Chantal Akerman e o cinema desajeitado de Ted Fendt, tudo em Beatrix é “fotografado” a pensar numa continuidade. Se, por um lado, observa a jovem de forma quase forense, por outro abre-se ao olhar da própria sobre ela mesma. E tudo o que é fechado aqui, porque abstracto e enigmático, conduz à abertura e nunca nega possibilidades.

Assim sendo, transições de movimentos, pequenos quadros de acções ou texturas de objectos surgem no composto formato do 4:3 em composições estáticas que estão na origem de transformações esclarecedoras. O corte de cabelo que dá a si mesma de forma vigorosa e abrupta em frente ao espelho é só um exemplo. Tingida de humor, a gramática do filme faz lembrar o acto agitado de folhear um flip book. Aquele wooosh, imagens que se desenrolam em movimento. Tendo em conta que Beatrix é, ao mesmo tempo, um produto que amplifica a densidade da passagem do tempo, é como se o documentário em si se tratasse de um esperneio visual pelo ecrã. E o aborrecimento atingido seja tão pleno que se confunde com a felicidade, muito difícil de quebrar mesmo na presença de amigos, que aparecem para jantar, possíveis futuros companheiros de casa ou até quando o telemóvel toca. “Ok, tenho mesmo que retomar com as coisas. Ainda tenho tanto para fazer”, diz a alguém ao telefone. Mas não é o caso. Há que disfarçar a inactividade quando outros a questionam, mas é importante retomar ao nada rapidamente.

Foto
dr

Daí que quando a receosa questão surge - “e o que é que fazes?”, enquadrada com um par de girassóis filmados de perfil, uma jarra de vidro que continha açúcar em pó espalha-se pelo chão, em jeito de resposta. Não é como se Beatrix não soubesse o que dizer. No meio de todo este transbordar de rituais e aconteceres banais, unificadores de dias e noites, muito pode ser argumentado. O problema existe na pergunta ter sido feita e não tanto na falta de resposta. Porque ao ser feita, está a finalizar a definição da rapariga ainda por conhecer. A jovem torna-se nada mais do que aquilo que escolheu capitalizar. Sentindo vergonha, não chega a responder. O seu estado é um de passagem, de decisões por tomar, sem emprego propriamente dito. Vê-se, desde cedo, que as duas cineastas austríacas confiam a criação do ser no estabelecimento de si mesmo. Então provocam na sua protagonista um processo de reconhecimento. Sozinha em casa, livre de arestas e rótulos, e distante do mundo e de uma noção clara de temporalidade, o convalescer da jovem adulta torna-se um nada fazer e este seu nada fazer surge enquanto o lugar onde tudo acontece e onde a pureza da significância pode vir a ser conquistada. Noutras palavras, o que Beatrix acaba a vislumbrar é uma ideia-abraço do aborrecimento, e com ele um pensamento inaugural que penetra no impenetrável, onde mais ninguém pode entrar.

Depois de galardoado nos festivais de cinema Viennale e FIDMarseille, nada é mais vibrante do que ver as suas imagens em fricção umas com as outras, como se de um notebook de feminilidade se tratasse. E um ansioso por se interligar. Já para não dizer de que não necessita de texto para falar de si mesmo, mas também nunca está ausente no seu raciocínio. Tanto é atmosférico como cai de novo na performance da realidade. Apoia-se onde a linguagem falha, e filma os cantos de uma casa e da rapariga nela de forma sensorial, ainda que nunca descurando o seu naturalismo. E cria, no fundo, um conceito de retrato mosaiesco na forma como se desconstrói que conduz aos silêncios das coisas que ligam as mulheres umas às outras.

Reflexos e tiques que raramente se vêem representados no ecrã, como comer uma torre de esparguete pelo simples acto de o fazer, retirar um tampão no banho, cobrir as pálpebras dos olhos com sombra azul ou examinar a dimensão da barriga quando escondida numa saia só elevam esta colectividade. O fascinante em Beatrix é que depois de tão analisada, são as outras mulheres e homens que denotam essa partilha e sacodem a sociedade da jovem. Entre todos, habita a mesma intimidade, as mesmas peculiaridades e idiossincrasias. No contar de um Verão na companhia de si mesma, e mais tarde na ligação que constrói com outra rapariga, a Beatrix no ecrã faz nada mais do que segredar-nos de que há um florescer patente na estrutura do seu e do nosso aborrecimento. E que tudo o que temos de fazer é não nos esquecermos de o activar. De vez em quando.

Sugerir correcção
Comentar