Herói ou justiceiro? Absolvição de Rittenhouse volta a acender o debate sobre as armas nos EUA
A decisão de Rittenhouse, de deambular pelas ruas de Kenosha empunhando uma arma em nome da protecção da propriedade privada dos desordeiros, toca num ponto nevrálgico: até onde se pode estender o direito à posse de armas?
A absolvição de Kyle Rittenhouse abriu outra frente na luta de longa data sobre a posse de armas nos Estados Unidos: é aceitável que um adolescente leve uma espingarda semiautomática para um protesto?
Conservadores aclamaram Rittenhouse como herói por exercer o seu direito à legítima defesa quando disparou e matou dois manifestantes e feriu um terceiro que, segundo ele, o atacaram numa manifestação por justiça racial em Kenosha, no estado do Wisconsin.
Os defensores do controlo das armas alertaram o júri que o veredicto podia inspirar uma nova vaga de justiceiros armados, depois de Rittenhouse – armado com espingarda semiautomática do tipo AR-15 – ter viajado da sua casa no Illinois para Kenosha, em Agosto de 2020, depois de explodirem protestos por causa da polícia ter disparado contra o afro-americano Jacob Blake.
As armas são há muito um assunto político forte nos Estados Unidos, onde leis permissivas permitiram que haja hoje a maior taxa de posse de armas de fogo por civis no mundo. Tiroteios em massa, que são muito mais raros em outras nações ricas, atormentam o país há décadas.
A decisão de Rittenhouse, na altura com 17 anos, de deambular pelas ruas de Kenosha empunhando uma arma em nome da protecção da propriedade privada dos desordeiros, toca num ponto nevrálgico sobre até onde se pode estender o direito à posse de armas.
“Como demonstram os acontecimentos daquela noite trágica de Agosto, um adolescente de 17 anos armado com uma AR-15 não traz segurança a ninguém”, dizem membros da direcção da Giffords, o grupo dedicado à defesa do controlo das armas que leva o nome da ex-congressista Gabrielle Giffords que ficou gravemente ferida num atentado a tiro.
“O veredicto de hoje [ontem] envia uma mensagem preocupante que irá encorajar mais violência e assassínios de justiceiros”, acrescentou a organização.
Os grupos de defesa do direito às armas e os apoiantes de Rittenhouse festejaram o resultado como uma grande vitória.
Passados minutos do veredicto, a National Rifle Association escreveu no Twitter aquilo que diz a Segunda Emenda da Constituição dos EUA: “Uma milícia bem regulamentada, sendo necessária para a segurança de um Estado livre, o direito das pessoas de ter e andar com armas, não deve ser infringida.”
À porta do tribunal em Kenosha, com um cartaz que dizia “Libertem Kyle!”, Brandon Lesco afirmava que o veredicto é justo. “Alguém tem de defender as cidades americanas das pessoas que as tentam incendiar. Tenho respeito por ele por lá estar, tenho respeito por ele por levar uma arma que usou de forma apropriada, que usou legalmente. Os jurados concordaram”, disse.
O juiz do caso rejeitou no princípio da semana a acusação contra Rittenhouse por posse ilegal da espingarda que usou no tiroteio, referindo que a lei era vaga em relação a isso.
“Mensagem inaceitável”
Os liberais denunciaram a absolvição de Rittenhouse como mais uma prova de um sistema judicial racialmente preconceituoso. Rittenhouse é branco como os homens que matou.
“Que um jovem branco possa cruzar uma fronteira estadual armado com uma espingarda de assalto e se envolver em confrontos armados que resultaram em múltiplas mortes sem ser responsabilizado criminalmente é um resultado bastante familiar num país onde o racismo sistémico continua a minar o sistema”, declarou Margaret Huang, presidente e directora-executiva do Southern Poverty Law Center.
Alguns especialistas em direito foram cautelosos ao especificar a distinção entre os factos específicos do caso de Rittenhouse e a mensagem geral que poderá enviar.
Os procuradores tinham a tarefa muito difícil de convencer os jurados de que Rittenhouse sem margem de dúvida não temeu pela sua vida na altura em que disparou, referiu Janine Geske, antiga juíza do Supremo Tribunal do Wisconsin. De acordo com a lei estadual, ele tinha direito a carregar a sua arma ostensivamente.
No entanto, Geske teme que o julgamento ensine a lição errada: “A de que é perfeitamente normal levar armas carregadas para ‘protecção’ quando se vai para uma manifestação ou contramanifestação. Será que vamos ter problemas substanciais sobre quem se está a defender quando tivermos duas pessoas com armas?”
Esse sentimento é partilhado por Karen Bloom e John Huer, os pais de Anthony Huber, um dos homens que Rittenhouse matou.
“Envia a mensagem inaceitável de que civis armados podem aparecer numa cidade, incitar a violência e depois usar o perigo que criaram para justificar que disparem contra as pessoas nas ruas”, disseram em comunicado.