O vinho, a mesa e outros pontos altos em Palmela

O postal da vila é o castelo. Mas há mais lugares de camarote para admirar a envolvente de serra, rio e planície. Incluindo mesas com vista sobre o que o território dá de bom: o pão, o queijo, o vinho

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A chegada a Palmela obriga a uma decisão estratégica que vai determinar o plano da descoberta: começar do ponto mais alto da vila e ir descendo, ou guardar o fim do dia para subir até ao castelo para acompanhar o sol a desaparecer no horizonte. Palmela está construída em escadinha, pelo que são muitos os pontos a partir dos quais, em dias de céu limpo, se pode avistar lá ao longe o desenho das pontes 25 de Abril e Vasco da Gama. Numa lógica de ir controlando os níveis de energia, é preferível encarar a subida logo ao início, confiando que, pelo caminho, não faltarão “miradouros” para apreciar a panorâmica.

O ponto de partida para decifrar rapidamente a geografia da vila será o Largo São João Baptista, entre a Biblioteca Municipal e a Casa Mãe da Rota dos Vinhos – uma montra de vinhos e gastronomia regionais com esplanada de paragem obrigatória para a primeira dose matinal de café e docinho. É a partir deste largo que Palmela se exibe em socalcos de casas caiadas.

Dali, não se leva mais de 10 minutos a chegar ao castelo, onde, a 400 metros de altitude, se tem real noção dos hectares de vinha que cercam o território – e que se mantêm em pano de fundo durante quase todo o passeio. Por esta altura as videiras já abandonaram o verde da estação quente para se pintarem de tons de terra, condizentes com os vinhos que aqui se produzem, sempre um bom motivo para uma ida a Palmela. Primeira paragem: Quinta do Piloto.

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Ânforas argelinas e moinhos de vento

A Quinta do Piloto não fica muito longe da vila. Dizer que ali se fazem provas de vinhos é altamente redutor e isso só se percebe quando o momento da despedida é atraiçoado pela vontade de ficar. Quer-se mais. Saber mais, provar mais, passear mais. Quer-se ficar e Filipe Cardoso, quarta geração à frente da quinta, tem todo o gosto em receber e explicar detalhadamente “o processo natural de fermentação, sem gasto de energia” de que resultam os seus vinhos.

Começa por falar de vinhos no plural, em nome de todos os da terra, e só depois de enaltecer a globalidade da produção local é que abre a porta de casa. E começa a história: primeiro a distribuição da vinha, que junto à sede tem quatro hectares exclusivos de moscatel de Setúbal – o resto fica entre a Arrábida, com solos argilo-calcários e a brisa de mar, e o Lau, com terreno mais arenoso, onde nascem brancos, tintos, rosés e moscatéis únicos, produzidos artesanalmente, com a “maquinaria” herdada do bisavô. Espreite-se a ânfora argelina, onde o moscatel fica a fermentar até Março, altura em que entrará em estágio em barricas – de brandy, tequila, rum e conhaque, acabadas de chegar para “umas experiências”.

Na adega, aberta a visitas e a provas personalizáveis, os tectos altos seguram as bandeiras da adiafa, a festa de encerramento das vindimas, que se celebra desde o século XIX em homenagem aos trabalhadores do campo e não se nega a aceitar gente de fora para brindar à colheita do ano.

A quinta fica no sopé da serra do Louro e, no curso da visita, vislumbra-se um imponente moinho a espreitar lá do alto. Uma análise rápida ao terreno dita a aproximação de carro – que se vem a confirmar desnecessária, após menos de dois minutos de trajecto serra acima. Afinal o que se via não era só um moinho bonito e bem recuperado. Há vida lá dentro.

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Rute e Pedro Lima começaram por usar o moinho da família como centro de interpretação dos cinco moinhos das redondezas. Primeiro, com workshops de pão e fogaça, burricadas para os miúdos e visitas guiadas ao moinho e à serra, mas a coisa acabava quase sempre com o casal a sentar à mesa os grupos que recebia e a preparar “qualquer coisa para comer”. Daí nasceu a ideia de contar a história ao contrário, da mesa para fora.

Criou-se o Histórias à Mesa, projecto a dois em que Pedro, padeiro convicto nas horas vagas, faz pão de raiz. Nas quatro a cinco horas em que a massa leveda, Rute entra em cena e começa o repasto. À mó fica entregue a missão de receber as entradas: o pão que há-de chegar, as compotas caseiras, o queijo de ovelha e a manteiga de um produtor vizinho, azeitonas do quintal do sogro, e depois o resto, que varia entre polvo à lagareiro, cabrito assado, bacalhau de várias maneiras e javali (no tempo certo), servidos como em casa, e acompanhados por branco ou tinto da região, que se vai ajustando às preferências do casal. Os preços variam entre os 12 e os 14 euros, panorâmica de serra incluída.

Repor energias e calorias

Se tudo correr dentro do tempo estimado, por esta altura serão horas de parar. Não necessariamente de parar de desfrutar, mas de dar descanso às pernas. À chegada a uma das principais artérias da vila, “a rotunda dos autocarros”, dá-se com o Wine Love, que tem tudo o que é preciso para concretizar a tal ideia de descanso: um bar de vinhos e cocktails de autor, um inesperado e muito competente menu de charutos e uma esplanada nas traseiras que, entre as 19h e as 19h30, oferece um espectáculo de pôr-do-sol a que vale a pena assistir na companhia de um vinho, de entre várias sugestões a copo.

No imediato, é isto que João Almeida, gerente e bartender, recomenda. Mas quando o rigor do Inverno assentar, “fará sentido aproveitar o aconchego do moscatel”, que aqui está representado pelos principais produtores da região, em mais de uma dezena de sugestões. Depois disso, que saberá pela vida, restam duas opções: mandar vir a carta de comida ou zarpar para outra paragem.

A língua e as costeletas de porco fumadas são tentadoras, mas há encontro marcado na Quinta do Anjo, à mesa do Flavors.

Nas palavras de Pedro Castelo Branco, proprietário e cozinheiro, o restaurante Flavors “é o único da vila a ter uma garrafeira exclusiva de vinhos da Península de Setúbal”. São mais de cinco dezenas de referências em exposição na sala. No espaço de uma villa residencial antiga, outrora dedicada às artes e ofícios, o edifício da olaria, com um imponente forno à entrada, está agora ocupado por este restaurante que ganhou forma a partir de uma “maluqueira”.

Pedro era advogado, trabalhou em IT durante várias décadas e um dia pediu para sair, queria cumprir o sonho de ser cozinheiro. De cozinha só sabia na óptica do utilizador, sem formação ou tarimba, apenas senso comum, gosto pelas experiências culinárias e muita vontade de receber bem quem procura comida caseira e uma viagem pelos melhores vinhos da região.

A carta é predominantemente portuguesa com desvios por Goa, de onde Pedro recuperou sabores trazidos pela família, que por lá passou para fugir da Guerra Colonial. E se há coisa em que o chef se aplica é no apuramento dos temperos. Seja no caril de vieiras e camarão, mergulhado num molho cremoso que resultará numa refeição suada, seja na alheira, empratada em torre, com grelos frescos e batatas salteadas no ponto, a recomendação de pairing é imediata: um tinto da Adega Camolas, corposo mas fácil de beber, perfeito para casar com a intensidade dos pratos que o próprio preparou, empratou e serviu. A sala tem lugar para 16 pessoas e não há perspectivas de aumentar o espaço, que tende a ficar lotado.

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Um desfile de pratos e de vinhos

No regresso à vila, ainda antes de passar a placa que anuncia a saída da Quinta do Anjo, pisca-se o olho ao famosíssimo Dona Isilda, um pequeno paraíso relvado à beira da estrada e onde, diz quem é da terra, “se come a melhor comida da região”.

Marca-se o almoço do dia seguinte e vai-se à descoberta, sabendo de antemão que se trata de um restaurante em regime de buffet, condição que afasta e atrai clientes na mesma medida. Fica o aviso de que se a ideia é uma refeição leve e equilibrada, este não será o sítio ideal.

A sala é ampla, soalheira, com um jardim apetecível e boa vista para a serra. Antes de se chegar à mesa, há que estudar tudo o que está em sugestão no dia. As ilhas de comida estão dispostas em crescendo: primeiro as saladas, depois os pratos tradicionais, seguidos de uma ilha dedicada às favas caramelas, à sopa da pedra, ao cozido de grão, à feijoada de choco e ao empadão de perdiz, que estarão no topo das especialidades locais. Logo ao lado, as migas de bacalhau em pão saloio, a açorda de alho, adornadas por um sem-fim de queijos e enchidos, e uma área com toda a doçaria da região, de onde sobressai o marmelo no forno com moscatel e canela.

Para entreter, comece-se com as empadas de perdiz acompanhadas de um espumante da terra (ainda sem rótulo e, por isso, reservado a momentos especiais). Depois, chegará o branco da casa, que enverga no rótulo o nome da fundadora, cujo legado é mantido pelos filhos Joaquim e Luís. O vinho, esse casa com os torresmos do rissol, os croquetes de novilho e os cogumelos gratinados com queijo de ovelha da Quinta do Anjo.

A garrafeira oferece grande destaque aos títulos da Península, que somam quase meia centena de sugestões. Esta vai crescendo dia a dia e é motivo frequente para juntar compradores estrangeiros em provas acompanhadas pelas equipas das quintas vizinhas. Portanto não será estranho partilhar mesa corrida com um grupo de provadores sedentos de novidades. Da equipa da Adega Camolas, que estava no local, surge o convite de última hora para uma visita às vinhas velhas da quinta, mas o tempo é curto. Fica a promessa de um rápido regresso.

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Pretexto para um desvio

A Quinta do Monte Alegre fica ligeiramente fora de mão, mas nada que não se faça. Até porque, explica o enólogo André Santana Pereira, a quinta renovou-se para “melhor receber os enoturistas”. É coisa para meia hora de viagem de carro, no triângulo entre Pegos Largos, Marateca e Lagoa do Calvo.

A loja e a sala de provas comunicam uma com a outra e preservam nas paredes de tijolo e cimento bruto a história da casa, fundada pelo bisavô de André. O castelão, “a casta mais representativa da região, é também a mais apreciada por aqui”, diz o enólogo. Apesar da produção reduzida, apenas três mil garrafas por ano, é um dos vinhos apresentados na prova premium, que inclui cinco referências e uma mesa bem recheada de petiscos da região, onde não faltam as fogaças, aqui em forma de cacho de uva, como jeito de pedir aos céus – especificamente a Santo Amaro – que abençoe a próxima colheita.

Nas modalidades mais simples de prova, os visitantes podem cingir-se a apenas três vinhos e sem degustação, mas se a visita à adega for condição essencial, então sim, a oferta já aumenta para quatro vinhos, acompanhados de pão e queijo da terra.

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Regresso à casa de partida

Terminado o dia, é na Casa de Atalaia, no coração da vila e a dois passos do castelo, que se oferece ao corpo o merecido descanso. A casa da família com o mesmo nome foi fundada em 1926 como adega de vinho a granel e em 2016 abriu as portas ao enoturismo. Foi já depois de o mercado ter recebido com curiosidade as primeiras cinco referências da Atalaia (branco, tinto, rosé, moscatel e moscatel roxo) que nasceram os quatro quartos para hóspedes, a piscina exterior e uma série de pátios e recantos onde está garantida a privacidade de todos.

A decoração resulta de uma combinação de móveis antigos, alguns de estilo Queen Anne, com peças da Olaio que Lurdes Atalaia foi comprando ao longo do tempo. Do outro lado da estrada, está a antiga adega – as vinhas, essas ficam fora da vila –, recentemente transformada em bar/cafetaria com uma zona dedicada às provas de vinhos, cuja oferta tem duas modalidades: a simples, com três vinhos, e a completa, com os cinco, incluindo um tinto premiado, ao qual se vai juntar até ao final do ano o castelão reserva de 2015.

Antes de pensar na abalada, é obrigatório reservar algum tempo para abastecer a bagageira, com paragens na loja da Adega de Palmela, dedicada aos principais vinhos locais a preços muito simpáticos, e na Confeitaria São Julião, onde Nuno Gil produz alguns dos doces regionais emblemáticos como o pastel de ginja, os dom-filipes, os pastéis de nata de moscatel e as línguas-de-gato, simples ou de chocolate. A visita à fábrica é possível mediante reserva, mas como Nuno passa muito tempo fora a fazer as voltas da distribuição, o melhor é marcar com antecedência. No caso de se dar com o nariz na porta, volte-se onde tudo começou, à Casa Mãe da Rota dos Vinhos, que tem sempre em stock vários doces com a etiqueta da confeitaria.

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Uma última paragem, para uma última prova de vinhos, na Venâncio da Costa Lima. Elsa Sousa, responsável pela oferta enoturística e conhecedora dos meandros da terra e seus segredos, guia a visita. O programa começa, invariavelmente, com uma aula resumida em seis módulos, desde a vinificação até à chegada à adega velha, onde as mesas dispostas entre as barricas criam o ambiente ideal para o que se segue: um desfile de brancos, tintos e moscatéis, que só ficam completos com os queijos da queijaria Simões, ali ao lado, os enchidos da CNC e a torta de laranja com receita original da própria Elsa.

Foi também dela a ideia de recuperar uma tradição antiga da terra, o avio da semana, o dia em que as patroas vinham à vila tratar das compras da semana, e que na loja da adega se encontra em formato de cabaz completo e variável, de acordo com os produtos da estação. Lá dentro, estão garantidos os queijos e enchidos, o pão, um ramo de malaguetas e, claro, o vinho. Num cabaz, uma panorâmica de Palmela.


Este artigo foi publicado no n.º 2 da revista Solo.