Os bebés dos influencers

O que me preocupa é o tomar por garantido que não há problema nenhum em expor a vida de outras pessoas, com todos os seus bons e maus pormenores, mesmo que seja a vida dos próprios filhos, e fazê-lo de uma forma que pode comprometer a sua identidade e personalidade para sempre. Preocupa-me ainda mais que não haja uma grande discussão sobre isto.

Foto
Valeria Zoncoll/Unsplash

O mundo das redes sociais é relativamente recente e os influencers ainda mais recentes são. Por isso, as preocupações que existem em relação ao impacto das redes sociais nos seus filhos, uma geração que ainda pouco cresceu para se pronunciar sobre isso mesmo, são muito escassas face ao tamanho do (potencial) problema em causa.

Contudo, é um tema que merece bastante atenção, não só por uma questão de efectiva protecção do direito à privacidade das crianças, como por uma questão de prevenir o eventual cenário de conflito em tribunal. O recente caso mediático da criança que aparece na capa do álbum Nevermind, nua numa piscina, e que crescida e adulta processou os pais, é um pequeno descortinar daquilo que nos pode estar à porta daqui a uns anos.

Desde há muito que se percebeu que o outro lado da moeda do mediatismo, da fama, era a perda excessiva de privacidade, que frequentemente conduz a comportamentos autodestrutivos e a um mal-estar psicológico, como é comum vermos nos grandes actores ou cantores que todos conhecemos. No entanto, desde a explosão das redes sociais que, por um lado, tornar-se mediático se tornou muito mais fácil e frequente e, por outro, a exposição a que se sujeita é muito maior. Mesmo perante este cenário, não ponho em causa, de forma alguma, que adultos, conscientes das suas acções, façam a escolha de perder a privacidade em troca do seu mediatismo. O que me preocupa, seriamente, é que tomem essa decisão pelos seus filhos.

Importa esclarecer, desde já, que não estou a pôr em causa anúncios esporádicos que sempre existiram com crianças e que não estão especificamente relacionados com a sua identidade (leia-se, ser filho de…) porque, nesse caso, parece-me possível que a criança mantenha o seu anonimato, só abdicando dele se assim o desejar. O que ponho em causa é a legitimidade de uma exposição constante e insegura, porque nem sequer conhecemos a fundo os riscos das redes sociais, e acredito que nos trará muitos problemas no futuro.

Na verdade, com um telemóvel sempre à mão e pronto a gravar, todo o processo de crescimento de várias crianças tornou-se um espectáculo com assistência ilimitada. Nós, espectadores, acompanhamos o seu nascimento, as suas fraldas, os seus banhos, as suas primeiras palavras, as suas birras, enfim, tudo, sem que alguma vez se tenha perguntado se aquela criança gostaria de estar a ser observada por milhares e, às vezes, milhões de pessoas. Se nos pusermos no seu lugar, talvez não gostemos de olhar para trás e imaginar toda a nossa infância a ser seguida atentamente por um gigantesco clube de fãs, sobretudo naquilo que considerarmos ter sido os nossos piores momentos.

Admitamos, pelo contrário, que a criança cresça e até goste de ter crescido dessa forma. Pode muito bem, até, ser a maioria dos casos. Mas e se ela não gostar? Pouco importa, porque a sua privacidade já foi comprometida de forma irremediável.

Perante esta crítica, há quem responda que as crianças agradecerão quando virem a sua conta bancária, porque elas também fazem dinheiro. Novamente, admito que os pais façam essa escolha, dinheiro por privacidade; novamente, choca-me que a façam pelas crianças. Será assim tão inconcebível que a escolha óbvia das crianças não seja a mesma dos pais?

Para além disso, em certos casos, parece que há uma perda de personalidade própria. Já não interessa quem a criança é, nem o que pensa ou sonha; interessa de quem ela é filha, e tanto quanto sabemos, ela será sempre, e apenas, a filha do influencer x ou da influencer y.  E lucra-se à custa disso.

No fundo, o que me preocupa é o tomar por garantido que não há problema nenhum em expor a vida de outras pessoas, com todos os seus bons e maus pormenores, mesmo que seja a vida dos próprios filhos, e fazê-lo de uma forma que pode comprometer a sua identidade e personalidade para sempre. Preocupa-me ainda mais que não haja uma grande discussão sobre isto.

Não sei exactamente como se resolveria esta questão e não sou a favor de imposições de mudança por decreto. No entanto, como primeiro passo, penso que deveria haver uma problematização séria desta questão, que reunisse especialistas, como psicólogos e juristas, para avaliar o verdadeiro impacto na vida das crianças. E, se for caso disso, pensar e propor a solução mais adequada para este fenómeno. Aconteça isso ou não, deixo o meu alerta a estes pais de que, talvez, e sem intenção, estejam a comprometer o desenvolvimento da identidade dos seus filhos.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários