Autoridades falharam e Mónica foi queimada pelo marido enquanto dormia com os filhos

PSP não cumpriu a lei neste caso, enquanto Comissão de Protecção de Crianças e Jovens teve uma actuação “burocrática e distanciada”, conclui Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica.

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PSP só perguntou a Mónica se era verdade que era vítima de violência doméstica Paulo Pimenta

Foram oito anos de violência verbal e física que culminaram na tentativa de homicídio de Mónica (nome fictício). No início de 2018, o marido atirou-lhe álcool em chamas enquanto ela dormia com os dois filhos, de oito e dois anos.

Ainda hoje as três vítimas sofrem as sequelas das agressões a que foram sujeitas. O ataque a que Mónica conseguiu sobreviver aos 26 anos causou-lhe uma desfiguração considerada grave e permanente, com múltiplas cicatrizes no rosto, pescoço, ombros e dorso. As crianças tiveram de ser encaminhadas para tratamento psicológico depois de um diagnóstico de perturbação psíquica e comportamento instável. Mesmo nunca tendo ficado provado que também eram alvo de maus tratos físicos, o pai acabou condenado a 12 anos de cadeia, por tentativa de homicídio e violência doméstica.

E no entanto tudo podia ter tido um outro desfecho, considera o mais recente relatório da Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica, grupo de especialistas que se dedica a analisar em profundidade situações deste tipo, em que a falta de intervenção atempada das autoridades pode ter consequências dramáticas e irreversíveis.

Mónica casou nova, e quando arranjou emprego os ciúmes do marido agravaram-se. Acusava-a de ter outro homem e batia-lhe em frente às crianças. Foi depois de uma dessas discussões que voltou a casa de madrugada e lhe ateou fogo. A criança mais velha, que tal como a mais nova se encontrava a dormir na cama com a mãe, começou a gritar. As labaredas alastraram ao colchão, enquanto o incendiário permanecia imóvel, ao fundo da cama. Só mais tarde ajudou a filha a despir a roupa.

“O incêndio propagou-se rapidamente e apenas foi extinto com a intervenção dos bombeiros”, descreve o relatório. Até àquele momento as autoridades pouco tinham feito para ajudar esta família. E no entanto houve sinais de que algo podia estar a correr menos bem.

Dois anos antes destes acontecimentos a mãe de Mónica tinha apresentado queixa na polícia contra o genro, por suspeitar de que a filha alvo da raiva do marido. Porém, como sucede com frequência nestes casos, a vítima negou tudo às autoridades.

PSP só perguntou se era verdade

Para a Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica, esta foi a primeira oportunidade perdida. A PSP “limitou-se a perguntar à vítima se era verdade que sofria maus tratos do marido” e como Mónica negou, arquivou a participação – em vez de a transmitir ao Ministério Público, para que investigasse o caso. “Os preceitos legais não foram cumpridos”, aponta o relatório, que fala numa actuação superficial das autoridades.

Mas há mais: ficou por esclarecer a origem de um inchaço num braço e de marcas no rosto da criança mais velha quase um ano antes do incêndio criminoso. A menina começou por dizer à assistente social e à psicóloga da escola que tinha sido o pai, para depois se desdizer. E se é verdade que desta vez o Ministério Público chegou a desencadear um inquérito, que acabou arquivado, o mesmo grupo de trabalho concluiu, ainda assim, que também desta vez “a comunicação e articulação entre a intervenção criminal e de protecção dos direitos da criança foram claramente insuficientes”.

Até porque a existência de uma segunda criança no agregado familiar foi omitida dos relatórios oficiais feitos sobre esta situação. A actuação da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens neste caso foi considerada “burocrática e distanciada, sem que tenha havido uma efectiva intervenção sobre a situação de perigo” em que estava a menor mais velha.

Hoje Mónica arrepende-se de ter encoberto o marido, que bebia, na esperança de que mudasse de comportamento. Descobriu tarde demais que isso não iria acontecer.

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