A utilidade da borracha (de novo e sempre)

O Estado, nas vestes de legislador, quer ou parece querer. O mesmo Estado, mas agora nas vestes de fiscalizador – mesmo de entidades desportivas – por omissão não quer.

1. Em 10 de janeiro de 2006, tive a oportunidade de apresentar comunicação ao Congresso do Desporto, promovido pelo Governo de então. Foi na sessão distrital de Lisboa, e intitulei-a de “A utilidade da borracha no sistema desportivo nacional”. Em breve, o que então transmiti era a minha convicção que o legislador desportivo (e já agora outros legisladores), com palavras bonitas, estabelece as suas normas que encandeiam. Num segundo momento, contudo, tais normas são repetidamente confrontadas com uma realidade que as despreza quotidianamente sem que haja a capacidade e a vontade dos poderes públicos e privados do desporto de fiscalizarem e sancionarem as acções que manifestamente – à vista de todos – as violam.

2. Perante este paradoxo a questão resolve-se com facilidade. Pega-se numa borracha e apaga-se a norma e assim o sistema vive em conformidade com a lei, sem discussões, nem oferecendo sinais de uma ineficácia nociva, que é bem pior do que a inexistência da lei. O sistema desportivo português como que vive em duas ondas diferentes, se falássemos de rádio: a frequência modulada da lei e a onda curta da realidade. Depois, naturalmente, a audição não é fácil, nem sã. Não há música harmoniosa, só ruídos.

3. No passado dia 6, o Jornal de Notícias publicou um trabalho sobre menores que no futebol são, cada vez mais novos, objeto da atenção (tentação?) de intermediários desportivos e até de marcas. E quem se der ao trabalho, percorrendo a Internet, por certo encontrará mais de que um exemplo nesse sentido, com a publicidade provinda de intermediários - ou empresas de intermediação – aos “seus” menores representados.

4. O curioso é que a lei portuguesa é, há muito tempo, clara a este respeito, mas pelos vistos não tão clara assim. Dispõe a lei de Bases da Atividade Física e do Desporto – Lei n.º 5/2007, de 16 de janeiro – no seu artigo 37.º, n.º 2, que o empresário desportivo (leia-se intermediário desportivo) não pode agir em nome e por conta de praticantes desportivos menores de idade.

Por sua vez a Lei n.º 54/2017, de 14 de julho (Regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo, do contrato de formação desportiva e do contrato de representação ou intermediação), dedica todo um espaço (artigos 36.º a 39.º) aos empresários desportivos.

No seu artigo 36.º, n.º 3, reafirma o anterior: é vedada ao empresário desportivo a representação de praticantes desportivos menores de idade.

Adita o artigo 42.º que são nulas as cláusulas contratuais que contrariem o disposto nesta lei ou que produzam um efeito prático idêntico ao que a lei quis proibir.

5. Voltamos ao mesmo de sempre. O Estado, nas vestes de legislador, quer ou parece querer. O mesmo Estado, mas agora nas vestes de fiscalizador – mesmo de entidades desportivas – por omissão não quer. Tragam a borracha, se fizerem o favor e apaguem a norma.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Comentar