O Direito do Desporto e o Direito

1. Já por inúmeras vezes temos destacado que as normas que regulam o Desporto não se quedam somente por aquilo que se pode denominar de legislação desportiva - diplomas pensados exclusivamente para regular qualquer segmento da actividade desportiva, como por exemplo, o seguro desportivo obrigatório, o contrato de trabalho do praticante desportivo, o regime jurídico das federações desportivas, as medidas de apoio ao alto rendimento ou o regime jurídico das sociedades desportivas. Ao desporto aplicam-se ainda, necessariamente, todas as projecções normativas públicas que com ele entram em contacto embora não tenham sido pensadas para regular qualquer questão desportiva. É o Direito em geral a entrar em campo, como sucede com os restantes sectores sociais.

2. Dispõe o artigo 69º (casos de impedimento – garantias de imparcialidade), n.º 1, alínea f), do Código do Procedimento Administrativo que, como a denominação faz crer, reúne normas sobre o actuar da Administração Pública, aqui num sentido amplo: “Salvo o disposto no n.º 2, os titulares de órgãos da Administração Pública e os respectivos agentes, bem como quaisquer outras entidades que, independentemente da sua natureza, se encontrem no exercício de poderes públicos, não podem intervir em procedimento administrativo ou em acto ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública, nos seguintes casos: f) Quando se trate de recurso de decisão proferida por si, ou com a sua intervenção […].”

Como chega esta norma ao universo desportivo? Pela via do processo disciplinar desportivo, na sequência de decisões dos tribunais administrativos (sempre eles a final).

3. A primeira consideração a fazer é a de que as normas daquele Código se aplicam ao agir das federações desportivas titulares do estatuto de utilidade pública desportiva, algo que, em geral, não merece contestação.

Em segundo lugar, olhando o órgão Conselho de Disciplina, obrigatório em todas federações desportivas, diz o Tribunal – abonando-se em doutrina especializada (Vieira de Andrade) – que se trata de órgão com funções jurisdicionais, num contexto específico de autorregulação de natureza pública efectuada por uma entidade privada, que implica a sua sujeição - das Federações Desportivas -, quando actuem no exercício de poderes públicos delegados, aos princípios substanciais da actividade administrativa - imparcialidade, igualdade, proporcionalidade, boa-fé, racionalidade - bem como à jurisdição dos tribunais do contencioso administrativo.

4. Desses passos advém a conclusão da plena aplicação da norma referida ao processo disciplinar desportivo, particularmente à composição do órgão disciplinar, quando actua em primeira instância (processo sumário com formação restrita) ou em recurso dessa decisão (em plenário).

Por exemplo, olhando a composição de cada uma das secções do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (sete membros no total), existe uma formação restrita (de três elementos) que decide os processos sumários e um plenário de sete elementos, compreendendo o presidente do órgão. Assim, em caso de recurso para o plenário, os três membros da formação restrita já não podem intervir na decisão de recurso (tomada em plenário), mas tudo junto faz com que tal plenário seja, abreviadamente, uma nova formação restrita, agora de quatro membros, excluindo da decisão os três que apreciaram o processo sumário pela primeira vez, sob pena da invalidade do procedimento disciplinar.

5. Ora se isto é assim para um órgão disciplinar composto por sete membros, veja-se a dificuldade da acção de muitos conselhos de disciplina das federações desportivas, compostos por 5 e mesmo 3 membros. A “crise” agrava-se a partir do momento em que a lei impõe uma decisão colegial aquando da apreciação e punição das infracções disciplinares.

6. Não é fácil viver com o Direito.

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