O tabuleiro, o coco e o luto: ecos cruzados da Bahia

Bethânia, Caetano, Letieres Leite, Gilberto Gil, João Gilberto e Mateus Aleluia: seis nomes da Bahia juntos no fluído acaso das notícias.

Há momentos em que todos os caminhos parecem ir dar a um mesmo lugar, e nesta quinta-feira esse lugar é a Bahia. É hoje que Maria Bethânia se estreia com um programa de rádio, que terá seis episódios e onde ela dará novas formas àquilo que tem feito sempre, em palco ou em disco: estabelecer diálogos entre música e literatura. Chama-se Tabuleiro (evocando No tabuleiro da baiana, de Ary Barroso), será mais um entre os muitos e muito recomendáveis programas da Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles e começa com Clarice Lispector em ligação com a música negra norte-americana (o sexto, a 9 de Dezembro, será dedicado à poesia portuguesa).

Bethânia, diz-se no anúncio oficial do programa, dedica este primeiro Tabuleiro a Caetano Veloso, porque foi o irmão que a apresentou à obra de Clarice. A história, já contada na imprensa brasileira, pode resumir-se assim: Caetano assinava a revista Senhor e, certo dia, viu nela um conto que achou que podia interessar à irmã. Chamava-se A Legião Estrangeira e era assinado “Clarice Lispector”. Bethânia leu e nesse dia apaixonou-se pela escrita de Clarice. Ora enquanto Bethânia se dá a ouvir na rádio via Internet, Caetano estreia novo disco (Meu Coco) onde aponta, em Anjos tronchos, o dedo aos imperadores das plataformas digitais (“Anjos já mi ou bi ou trilionários/ Comandam só seus mi, bi, trilhões”), contrapondo os malefícios das redes sociais (“Um post vil poderá matar/ Que é que pode ser salvação?”) aos benefícios que o faz também envolver-se nelas (“Mas há poemas como jamais/ Ou como algum poeta sonhou”).

Num dos temas do novo disco de Caetano (Pardo), tal como nos últimos disco e espectáculo de Bethânia (Mangueira e Claros Breus), há a marca de um mago dos sons, também baiano de nascimento, chamado Letieres Leite. Morreu em 27 de Outubro, de insuficiência respiratória, após lhe terem sido detectados sinais de covid-19 uma semana antes. Isto apesar de a viúva ter garantido à comunicação social que ele já tinha recebido as duas doses da vacina. Mas Letieres pertencia a um grupo de risco, era asmático, e acabou por não resistir. As reacções de dor não se fizeram esperar, nessa hora de luto. Caetano, reagindo à “notícia inaceitável”, escreveu: “A música baiana, a música brasileira, a música perdeu hoje um dos seus maiores formadores. A vida perdeu um dos seus mais dignos representantes.” Nascido em Salvador, a 8 de Dezembro de 1959, Letieres passou da Bahia ao Sul do Brasil, viveu (e tocou) nove anos na Áustria a partir de 1985 e em 1994 voltou ao Brasil, acompanhando uma legião de grandes nomes. Em 2006 fundou a Orkestra Rumpilezz, cuja designação vem da fusão do nome dos três atabaques usados no candomblé (rum, rumpi e lé) com as últimas duas letras da palavra “jazz”.

“Um músico excepcional da Bahia, flautista, saxofonista, compositor e alguém que fez uma orquestra realmente originalíssima, os sopros (saxofones, trompetes e trombones) com uma secção de percussão da pesada. É um dos grandes músicos do Brasil, admirados por todos os lugares para onde ele vai – e ele viaja para tudo o que é canto”. Este retrato, exactíssimo, de Letieres Leite, foi feito aos microfones da Rádio Batuta (a mesma que agora recebe Bethânia) pelo saudoso investigador e radialista Zuza Homem de Mello (1933-2020) em 2017, na sua Playlist do Zuza, por onde passaram todos os grandes nomes da música brasileira e não só.

Pois Zuza, que inesperadamente nos deixou em Outubro de 2020, vítima de um fulminante enfarte do miocárdio, é agora também notícia, porque o livro que deixou pronto no dia anterior ao da sua morte, Amoroso: Uma Biografia de João Gilberto, acaba de chegar às livrarias brasileiras, esperando-se que venha a ser distribuído (ou até mesmo editado) em Portugal. A Folha de S. Paulo, por exemplo, deu-lhe nota máxima (5 estrelas), afirmando que “o livro traz aquela saborosa intimidade sempre presente nos relatos do autor sobre episódios da cena musical brasileira. Zuza é a mais perfeita tradução da chamada testemunha ocular da história”. A frase é de Thales de Menezes e quem já leu Zuza sabe que esta descrição é perfeita.

Enquanto isso, dois outros grandes nomes da música e da cultura nascidos na Bahia estão por estes dias em Portugal. Gilberto Gil, numa digressão com Adriana Calcanhotto; e Mateus Aleluia, cantor e compositor que fez parte do celebrado grupo Os Tincoãs e que, depois de cantar na Womex (onde foi também exibido um documentário centrado nele, Aleluia, o canto Infinito do Tincoã, de Tenille Bezerra), estará esta quinta-feira em Lisboa, no B.Leza (22h) e dia 6 de Novembro em Coimbra (Salão Brazil, 22h). Bem cheio, o tabuleiro da Bahia.

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