A máscara e as más caras
Se a pandemia revelou um interesse maior na ciência, com juras de amor de todos os responsáveis, bastou o (entretanto falecido) Orçamento do Estado para ver que essa máscara caiu, se é que alguma vez foi usada. Discussões concentraram-se na saúde, educação e cultura, nunca na ciência.
Recentemente ao atravessar à noite a Praça da República dei-me conta de que alguém que tivesse estado em coma nos últimos dois anos teria uma pergunta a fazer. Isto porque não seria imediatamente óbvio que os panos com elásticos pendurados nos braços da maioria dos transeuntes eram máscaras, para quem não tivesse passado todo este tempo na sua companhia. Foi o momento exato em que percebi que uma certa “normalidade” estava de volta, mesmo que não estejamos livres do Inverno, de novas variantes de SARS-CoV-2, ou de outros agentes patogénicos. Mas nunca estaremos, como não estávamos antes. E suspirei; tão alto que uma jovem perguntou se “o senhor se sentia bem”. A resposta não era linear.
Nestes anos houve coisas muito positivas em relação a trazer a ciência para um lugar de destaque. Quer através de regras simples de proteção sanitária, quer através de realidades complexas que era preciso comunicar de forma clara (como funcionam diferentes tipos de vacinas, que modelos melhor preveem a evolução da pandemia, quais os potenciais efeitos de diferentes medidas). Mas foram muitas vezes tapadas com máscaras. Desde logo, o conhecimento devia ser só um, independentemente de ir buscar dados aos mais variados locais (muitos fármacos têm raízes em conhecimento tradicional). Mas a ação política não depende dele, na verdade até o pode dispensar, se não lhe disser o que quer ouvir. É por isso que colegas investigadores, a maioria pensando o mesmo do ponto de vista científico, relatam evoluções muito distintas da pandemia nos seus respetivos países.
Outro problema que é bom repetir, porque ciência também é repetição (para desalento de qualquer investigador principiante), é que a incerteza tinha sempre de estar presente, porque era impossível fazer as experiências necessárias para chegar a conclusões mais robustas. Quer dizer, poderia ser possível, mas em modelos animais, celulares ou computacionais; não em pessoas. Quando lida com humanos, o mapa que a ciência usa tem de se adaptar mais ao território, e não o contrário. Muitas vezes nesses casos os estudos até são retrospetivos (para tentar explicar o que se passou noutras alturas, com outras doenças), e não tanto prospetivos (com a espinhosa missão de pensar o futuro). Não se poderia, por exemplo, vacinar apenas metade de uma qualquer população só com um tipo de vacina, esperar uns meses para ver o que acontecia, e tirar conclusões sobre segurança ou eficácia. Entretanto um desastre evitável poderia ter ocorrido. Até se fizeram ensaios, mas pequenos (até individuais) e sem qualquer valor científico, que foram depois multiplicados de forma acrítica. Na verdade, a maioria dos ensaios que até tinha números maiores provou, sem surpresa, quer a eficácia das soluções implementadas, quer a ineficácia de várias “pseudo-curas”.
Também se notou outra coisa muito óbvia: ter um doutoramento ou estar inscrito numa Ordem não implica que as pessoas sejam honestas, ponderadas, humildes, sérias, educadas. Muitos com maior exposição estiveram bem, mas houve também uma mediatização exagerada (até com participação em publicidade enganosa “antiviral”, que ainda a semana passada estava na A1), e muito falar sem saber. As participações mais categóricas, vincando não ter nenhumas dúvidas (quando era cientificamente impossível não ter), foram particularmente más.
Por último, se a pandemia revelou um interesse maior na ciência, com juras de amor de todos os responsáveis, bastou o (entretanto falecido) Orçamento do Estado para ver que essa máscara caiu, se é que alguma vez foi usada. Discussões concentraram-se na saúde, educação e cultura, nunca na ciência. Quer porque esta não entrou no imaginário coletivo, quer porque o ministro Manuel Heitor tem sido hábil a promover o que não existe.
Mas a realidade teima em resistir a efabulações e, entre um investimento abaixo da média europeia, cativações, e o disfarçar como investimento o que de facto não é, ficámos (mais ou menos) na mesma, com várias “bombas” que continuam a ameaçar rebentar, como a dos investigadores abrangidos pela norma transitória do Decreto-Lei 57/2016 (e a precariedade de investigadores, em geral), ou o subfinanciamento crónico do ensino superior e dos centros de investigação, que nada foi feito para resolver, e a quem se pedem que façam omeletas fornecendo-lhes cascas de ovo.
A situação pode ser dramática no caso, por exemplo, dos Laboratórios Associados, cujos contratos ainda não foram assinados, e que já efetuaram despesas desde janeiro deste ano, neste momento sem garantias efetivas que serão suportadas. Sim, houve algumas “iniciativas covid”, mas para poderem ir mais longe era preciso algo que não há: uma estratégia nacional para além da excelente vontade de alguns (quer indivíduos, quer instituições). E é mesmo de “poderem” que se trata, a ciência não se faz como uma ponte ou aeroporto, que se constroem se todas as garantias (financeiras, arquitetónicas, ambientais, materiais, de engenharia) estiverem disponíveis, e saem (ou deveriam sair) como planeado. A ciência faz-se pensando em pontes e aeroportos específicos, mas dando liberdade para que, que em vez disso, se possam inventar, quer melhores pontes e aeroportos, quer, por exemplo (e por absurdo), o teletransporte ou baterias produzidas de plástico reciclado, em vez de lítio e terras raras.
É certo que, tudo somado, a gestão político-sanitária da pandemia correu muito bem, e parabéns são devidos aos responsáveis. Mas é frustrante que nem uma emergência que revelou à sociedade a importância da ciência tenha servido para mudanças estruturais. Pior: serviu como desculpa para as adiar, o que até se vê nos resultados sobre os vários grandes estudos pandémicos (mecanismos de infecciosidade, produção de anticorpos, perfis genéticos e suscetibilidade, epidemiologia), onde a presença portuguesa é vestigial.
Apesar de tudo, aproveito para dizer desde já que, se for o caso, prevejo poder ter saudades de Manuel Heitor, uma excelente pessoa que fez malabarismo com o peso político que (nunca) teve. Foi liberal com os factos muitas vezes (para ser simpático), e apresentou planos imprevisíveis e desconexos. Mas muito pior fez quem o antecedeu (excelentes cientistas nem sempre dão bons administradores...), que foi previsivelmente péssimo, aceitou a falta de investimento e, com o mantra da “poda”, quis mesmo destruir o que José Mariano Gago tinha criado. Espero, sinceramente, que tenham aprendido qualquer coisa, se voltarem ao poder. A pessoa mais interessante no PSD não estará disponível, foi eleito presidente da Câmara Municipal de Lisboa, e é duvidoso que quisesse desbaratar capital acumulado em algo que tem tudo para correr mal. Enfim, viveremos em tempos interessantes.
Confesso, a terminar, que o meu suspiro na Praça da República também estava relacionado com questões pessoais. Como deixar de ter a desculpa perfeita para evitar festividades (casamentos, batizados, festas familiares, jantares diversos, reuniões e congressos presenciais), e ter de assumir que a proximidade, os beijinhos e os abraços regressam ao meu quotidiano. Ou seja, revisitar as linhas angustiantes do viver (educadamente) em sociedade. Para isso espero que ainda me sirvam as várias outras máscaras que usei no passado, e que substitui estes anos por uma única, sanitária. Pendurada agora no braço, em memória (espero) de tempos idos.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico