Porquê a regulação independente?
Os erros destas entidades – têm sido vários – devem ser apontados com veemência, mas não devem minar a regulação independente. Tal como os erros de um juiz não prejudicam a autonomia do poder judicial.
O primeiro-ministro fez no Parlamento duras críticas à Anacom, acusando-a de incompetência na gestão do leilão 5G, o que implica um “atraso imenso” desta rede em Portugal.
Concorde-se ou não, são críticas legítimas, feitas no sítio certo, a Assembleia da República. O problema veio depois. Talvez entusiasmado pelas palmas, António Costa expressou o que lhe vai na alma em relação aos reguladores: “Quem construiu essa doutrina absolutamente extraordinária, a de que era preciso limitar os poderes dos governos para dar poderes às entidades reguladoras, deve refletir bem sobre este exemplo do leilão do 5G para ver se é este o bom modelo de governação económica do futuro”.
Num país habituado ao centralismo, com instituições frágeis perante o poder político e uma sociedade civil nem sempre pujante (estou a ser otimista), percebem-se as dúvidas quanto à independência de que gozam a dezena de reguladores económicos que existem em Portugal. Refiro-me às nove entidades previstas na lei-quadro (AdC-Autoridade da Concorrência, Anacom-Autoridade Nacional de Comunicações, ANAC-Agência Nacional de Aviação Civil, AMT-Autoridade da Mobilidade e dos Transportes, ASF-Autoridade der Supervisão de Seguros e Fundos de pensões, ERS-Entidade Reguladora da Saúde, CMVM-Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, ERSAR-Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos, ERSE-Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos) e ao Banco de Portugal.
Mas porque existem reguladores independentes?
Na sequência das privatizações dos anos 90, foram sendo criados organismos moderadores e fiscalizadores nos sectores liberalizados, onde o Estado deixou de ser “empresário” para ser “árbitro” equidistante dos agentes económicos. Na linha das independent agencies americanas, criadas na órbita do Congresso, e do direito europeu, procurou-se “desgovernamentalizar” os reguladores conferindo-lhes um estatuto de independência (orgânica, financeira e técnica) para os distanciar das lógicas político-partidárias: devem decidir por critérios técnicos, e não de popularidade.
Simplificando, com a regulação independente de setores económicos relevantes (energia, água, banca, seguros, comunicações, etc.) onde existem falhas de mercado, compete aos órgãos políticos aprovar as leis e definir as linhas estratégicas e as metas setoriais, com base num programa político sufragado em eleições. Compete aos reguladores um papel bem mais modesto: garantir que essas metas de política geral são prosseguidas através de decisões tecnicamente adequadas, para cada mercado regulado, bem como a supervisão e fiscalização do quadro legal e regulatório. Separa-se, portanto, a esfera política da esfera técnica na gestão pública.
Isto pode levantar interrogações a quem tenha uma visão monolítica e centralizadora do Estado. Mas apesar dos erros cometidos, é incontornável que a regulação independente tem trazido previsibilidade e estabilidade à intervenção pública em setores económicos sensíveis, na maioria das economias desenvolvidas. Basta alguma memória histórica para perceber isso. O que pensaríamos, por exemplo, se os governos mantivessem o poder de desvalorizar a moeda ou fixar o preço da eletricidade?
Mas quem regula os reguladores?
A mais independência deve corresponder um maior escrutínio. Não viveríamos numa democracia liberal, se não existisse uma responsabilização de todos os poderes instituídos, em especial daqueles que gozam de maior autonomia decisória, como os reguladores.
Os erros destas entidades – têm sido vários – devem ser apontados com veemência, mas não devem minar a regulação independente. Tal como os erros de um juiz não prejudicam a autonomia do poder judicial. A independência é o oxigénio da regulação. Sem ela os reguladores ficam mais sujeitos a fenómenos graves de captura por interesses económicos ou por grupos de pressão, como partidos, lobbies ou sindicatos.
Para além do controlo de legalidade feito pelos tribunais (demasiado lento, na prática, com a quase paralisação da justiça administrativa), a lei prevê que os reguladores sejam fiscalizados pelo Parlamento, que intervém na escolha dos responsáveis de cada regulador e no acompanhamento da sua atividade – o que nem sempre tem acontecido. O escrutínio parlamentar rigoroso da ação dos reguladores deveria fechar o “círculo” da legitimidade democrática, reinserindo os reguladores no sistema político sem, contudo, minar a sua independência.
Os políticos são responsabilizados através do voto e das eleições. Os reguladores através da sua competência técnica. Ou falta dela.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico