Conferência sobre o Futuro da Europa: “Vai ser interessante passar a mensagem às pessoas que realmente tomam as acções”
A “CoFoE” é uma grande empreitada que tem entusiasmado dirigentes europeus, mas tem demorado a “furar a bolha” e a entrar no radar de cidadãos comuns. Os participantes nos painéis de cidadãos parecem convencidos: dizem-se surpresos com o processo “muito democrático” dos painéis.
As expectativas estão em alta para a Conferência sobre o Futuro da Europa, que teve neste sábado, em Estrasburgo, a reunião plenária que reuniu pela primeira vez representantes de todos os Estados-Membros, desde parlamentos a organizações da sociedade civil, e 80 “embaixadores” de quatro “painéis de cidadãos europeus”: “Vai ser interessante para perceber melhor o que é que queremos falar, e também para passar a mensagem do que aconteceu no nosso painel às pessoas que realmente tomam as acções”, conta Inês Silva, de 24 anos, uma das embaixadoras do painel que se dedicou ao tema das migrações e da “União Europeia (UE) no mundo”.
A Conferência sobre o Futuro da Europa (CoFoE) - que conjuga uma série de encontros entre cidadãos e governantes ao longo de quase um ano - foi pensada como uma grande auscultação de cidadãos europeus para compreender percepções sobre a UE e recolher recomendações sobre o que pode mudar no funcionamento das instituições. A reunião plenária deste sábado foi o culminar da primeira fase do trabalho, depois de quatro fins-de-semana em que grupos de 200 cidadãos, escolhidos aleatoriamente, estiveram reunidos para escolher as questões sobre as quais gostariam de conhecer mais e pronunciar-se ao longo das próximas sessões em que se encontrarão. No encontro também participaram representantes de eventos realizados em vários países e divulgados através da plataforma digital multilingue.
“Queremos tentar representar um pouco aquilo que aconteceu, apesar de também não sabermos muito sobre o assunto”, confessava ao PÚBLICO Inês Silva, estudante de ortóptica e ciências da visão, após o encerramento do seu painel, que reuniu entre 15 e 17 de Dezembro, onde foi eleita como uma das 20 “embaixadoras” do seu grupo. Vasco Fernandes, de 21 anos, é o outro português sorteado para estar na reunião plenária de hoje da CoFoE, representando o primeiro painel, dedicado a questões económicas e sociais - tema sobre o qual também reconhecia poder falar apenas da sua própria experiência.
A ideia é precisamente essa: os cidadãos são escolhidos tendo em conta apenas questões demográficas como idade, género, nível de escolaridade e proveniência urbana ou rural, construindo a partir daí ligações entre as suas vivências e os temas que lhes são propostos. A questão da idade é particularmente importante - afinal, esta é uma discussão sobre o futuro que pertence acima de tudo aos jovens -, procurando-se sempre que um terço dos participantes dos grupos tenha entre 16 e 25 anos. Na reunião plenária estão também presentes porta-vozes do European Youth Event, que teve lugar em Estrasburgo a 8 e 9 de Outubro, trazendo as 20 ideias mais populares do encontro.
A CoFoE é uma grande empreitada que, contudo, tem demorado a “furar a bolha” e a entrar no radar dos cidadãos. Klaudia Mazur, 24 anos, estudante de medicina da Polónia que também foi uma das pessoas escolhidas para representar o seu painel, recorda a perplexidade com que recebeu o convite para estar presente no painel de cidadãos. “Não tinha ouvido nada sobre esta conferência antes de ter sido escolhida. No início pensei que era um engodo. Até chegar aqui, foi o que os meus pais pensaram.”
O francês Mansef Campos, que confessa interessar-se por política “de uma forma mais distante”, espantou-se com o sistema “muito democrático” dos painéis. “Não esperava que fosse assim”, diz o estudante de História, de 21 anos, que sente que as pessoas da sua idade “não têm muita representação ou impacto mais directo na democracia”. Para além das diferenças entre experiências de cidadãos dos diversos países que ouviu no seu grupo de trabalho, notou também padrões geracionais: “Surpreendeu-me ver pessoas que tinham a mesma idade, por exemplo 40 e 50 anos, basicamente partilharem os mesmos valores comuns”, diz este estudante, que acabou por ser também um dos 20 sorteados como relator do painel.
Informar para a participação
Com os cidadãos escolhidos de forma aleatória, sem conhecimentos específicos sobre os temas de cada painel, é preciso dar ferramentas para que as decisões sejam tomadas de forma fundamentada.
No programa de cada painel, além dos trabalhos em grupo, estão incluídos momentos para ouvir especialistas. “Não conhecia algumas coisas, principalmente na questão das armas”, explica Inês Silva. “Foi muito importante quando os peritos vieram falar, para toda a gente do meu grupo ter informações mais objectivas.” Entre os diversos assuntos tratados sobre o tema “a UE no mundo”, uma opinião pareceu-lhe consensual: “Falámos todos que era preciso união dentro da UE, e não tentarmos puxar cada um para o seu lado.”
Identificados os temas gerais, é altura de aprofundar. “Tentar ler o máximo que posso sobre o assunto mas também aproveitar”, diz a estudante de ortóptica, residente em Sintra. “Falta saber porque é que as coisas acontecem assim, que propostas é que podemos fazer para mudar. Se calhar não é preciso mudar tanta coisa, mas talvez entender melhor o que está a acontecer para que não haja essa tal união”, remata Inês.
O desafio será também encontrar consensos. Para o estudante francês Mansef, por exemplo, “o mais importante é a soberania das nações.” “O problema é que a Europa nem sempre respeita a soberania e interesses de todos os países… Gostaria de ver boas parcerias e cooperação, mas sempre respeitando os interesses de cada país.”
No grupo de trabalho de Klaudia estiveram pessoas da Polónia, Roménia, Holanda e Bélgica. Falaram sobre algo sobre o qual “nunca tinha pensado antes”: o princípio da unanimidade nas decisões da UE em matéria de política externa. Klaudia, que diz ser “mesmo, mesmo pró-UE”, trouxe a perspectiva polaca: “É um pouco como aconteceu na história da Polónia, tivemos o princípio de liberum veto, o veto livre. Os primeiros governos polacos, nos séculos XVI e XVII, tinham esta regra em que qualquer participante podia dizer que se opunha, e os procedimentos eram interrompidos. E isso atrasou tanto o país, congelou imensas políticas, já que qualquer um podia dizer que não queria... E isso está a acontecer agora na Europa.”
Inclusão
Estamos ainda no início de um percurso que decorre até à Primavera de 2022. “A próxima sessão é aquela em que vamos começar realmente a debater sobre os assuntos, e não só sobre os temas de que queremos falar”, diz Inês, referindo-se ao funcionamento do próximo encontro do seu painel, que decorrerá online no final de Novembro - a segunda vez em que este grupo de 200 pessoas se reunirá para debater ideias. Cidadãos e cidadãs definirão então as questões que consideram importantes dentro dos temas mais gerais seleccionados nos primeiros encontros.
Nas sessões de grupos, “tivemos ideias muito abrangentes sobre o que gostávamos de discutir nos próximos encontros”, descreve Klaudia. Para o percurso que se segue até ao final deste processo, nota o esforço da organização para que as pessoas possam tomar decisões informadas: “A pessoa que estava a moderar perguntou várias vezes o que é que precisávamos para nos sentirmos informados o suficiente para falar sobre estas questões, porque sabem que nem toda a gente sabe o suficiente, por exemplo, sobre cibersegurança”, exemplifica. “Temos pessoas idosas que nem sequer usam Internet e elas devem fazer-se ouvir nesses assuntos também, porque este continua a ser o mundo delas.”
Também a inclusão tem sido importante neste percurso. Além do esforço em criar painéis com alguma diversidade, em particular do ponto de vista etário e de género, o acompanhamento continua ao longo das sessões: “nem toda a gente tem um portátil ou boa ligação à Internet, e estão a assegurar essas coisas porque querem mesmo que consigamos participar, independentemente das condições económicas”, descreve Klaudia.
A questão da inclusão é para si um tema caro, já que se identifica como pessoa trans não-binária - não se identifica com género masculino nem feminino. Estudante do 4.º ano de Medicina na Polónia, pôde registar-se no evento com o seu nome social (diferente do nome legal), que em Estrasburgo foi sempre usado e respeitado, preferindo ser tratada com pronomes neutros. (À falta destes pronomes no português corrente, aceita que usemos pronomes masculinos ou femininos - sem preferência por um ou outro.)
“Não há muitas pessoas como eu, mas ainda assim incluíram-nos no questionário, importam-se de facto. Não esperava que fossem tão cuidadosos”, conta. Até mesmo no processo de eleição das 20 pessoas que representam o painel - em que foi uma das escolhidas - havia uma opção para que pessoas não-binárias pudessem identificar-se como tal. “Pensei, ‘Eles sabem que eu existo!’”. “Foi muito surpreendente, e isto é mesmo importante para mim porque na Polónia as pessoas LGBTQ não são propriamente bem tratadas. São esses os valores europeus que subscrevo”, remata.
O PÚBLICO viajou a convite do Parlamento Europeu