Desencanto orçamental
Quem não está em maioria tem de ter disponibilidade para dialogar.
O aumento do custo de vida entra-nos pelos depósitos de combustível dentro, transformando em produtos de luxo os que antes eram banais. E não é uma política ambiental, é uma forte arma de desigualdade, pois pesará sempre mais nas carteiras menos recheadas do que nas quais uns euros a mais ou a menos não fazem diferença. Num país em que uma grande parte do território não tem transportes públicos adequados (ou nem sequer tem transportes públicos), essa desigualdade aprofunda fatores de atraso.
Várias empresas fizeram soar alertas para a falta de componentes e a rápida subida de preços de matérias-primas. Basta uma pequena visita à mercearia ou ao supermercado e somos assaltados pelos aumentos de preços dos produtos expostos nas prateleiras. Há já quem preveja um “cocktail explosivo” que nos será colocado no sapatinho pelo Natal. O aumento do custo de vida é real e ameaça os rendimentos das famílias.
Os alertas para esta escalada de preços escassez de produtos não são apenas nacionais, surgem pelo mundo. É matéria de destaque em todos os jornais de referência e preocupação de inúmeras instituições. No entanto, fazendo lembrar aquela pequena aldeia gaulesa onde viviam Astérix e Obélix (e eu sempre preferi o carregador de menires), há pontos de resistência onde parece que esta preocupação mundial não entra, que vivem uma outra realidade. É o que faz lembrar o Ministério das Finanças e a sua política - só que, ao contrário dos intrépidos gauleses, não temos nenhuma poção mágica que nos livre dessas ameaças. São as políticas públicas que as têm de prever e responder, mas é aí que começam as desilusões com a proposta de Orçamento do Estado para 2022 (OE2022) apresentada no início da semana pelo Governo.
Há questões que não precisam de esperar pelo Orçamento do próximo ano para terem uma resposta. O combate à especulação nos preços dos combustíveis é um desses exemplos. Não quis o PS (e a direita toda) que fosse fixado um preço máximo para a venda de gasolina e do gasóleo como o Bloco de Esquerda propôs ainda há umas semanas no Parlamento. Chumbaram essa proposta em nome da saúde de um mercado que nos está a pôr doentes a todos. Foi um erro. Mas o euromilhões que o Ministério das Finanças está a levar inesperadamente com a subida explosiva dos preços dos combustíveis devia ser usado para reduzir o ISP. Aliás, como o próprio Governo garantia há anos que ia fazer. Não responder a esta realidade é falhar no apoio às famílias e à economia, continuar a colocar o défice à frente das necessidades do país.
É essa política de dar prioridade ao défice e não à economia que fez com que Portugal fosse dos países que menos gastaram no apoio a famílias e empresas no período da pandemia. E, como se vê, se esse apoio fosse mais forte seria também mais rápida e capaz a recuperação económica, como se percebe na comparação com outros países europeus. Um Governo poupadinho nas soluções acaba por acrescentar problemas, como se vê.
A proposta de OE2022 é filha do mesmo raciocínio pequenino, falhando em matérias essenciais. Faz promessas de baixas de IRS para milhões com valores individuais irrisórios - no total pouco mais é do que a borla fiscal que a EDP teve com a venda milionária das barragens. Rejeita valorizar quem trabalhou uma vida inteira e tem direito a uma reforma digna mantendo um corte pelo “fator de sustentabilidade”, um mecanismo perverso usado pela direita para penalizar as reformas antecipadas das longas carreiras contributivas - ficam lesados os mais velhos e os mais novos que estariam disponíveis trabalhar, bem como o combate à pobreza que se faz com esta política. Mantém os cortes indiretos que a troika deixou nos salários dos trabalhadores, seja nas indemnizações por despedimento ou na redução do valor das horas extraordinárias. Falha no investimento público que defende os serviços que nos são fundamentais e que têm uma manta demasiado curta para cobrir todas as necessidades, como é o caso do SNS.
Não é só por nenhuma das propostas que o Bloco de Esquerda fez ao Governo estar prevista na proposta de OE2022 que ela é má, é mesmo porque falha em respostas essenciais para corrigir problemas estruturais do país. Podia o Governo fazer diferente? Podia, bastava perceber que quem não está em maioria tem de ter disponibilidade para dialogar. Ganhará essa vontade?
Pedro Filipe Soares é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico