Os costureiros da nova autocracia em Angola
A decisão do Tribunal Constitucional de anular o XIII Congresso Ordinário da UNITA não pode ser interpretada de forma racional sem o seu devido enquadramento no contexto político.
Angola prepara-se para realizar as eleições gerais no próximo ano, o quarto processo eleitoral após o término da guerra civil. E, apesar do controlo absoluto da máquina do Estado que lhe permite inclusive manipular os resultados eleitorais, o regime do MPLA nunca esteve tão perturbado com a hipótese de ser apeado. Várias razões combinadas explicam essa mais do que cogitada mudança em 2022. Mas a mais importante é inegavelmente a consolidação da descrença no projecto reformista de João Lourenço.
Depois de assumir o poder, o sucessor de José Eduardo dos Santos reanimou as esperanças de uma maioria expressiva dos angolanos. Mantendo no discurso as principais promessas de campanha, João Lourenço contagiou até os mais cépticos dentro e fora do país, ao traçar os trilhos do que chamava de nova Angola. Do combate à corrupção à reforma do Estado, da promoção dos processos democráticos à criação massiva de emprego, Lourenço viveu os dois primeiros anos de mandato como um alucinado vendedor de utopias. E a generalidade dos angolanos respondeu-lhe com expectativa e paciência. Em parte, porque havia a convicção cristalizada de que a saída de José Eduardo dos Santos, depois de duradouros 38 anos, exigia, por si só, uma dose de tolerância para o seu sucessor. Fosse quem fosse.
Ciente disso e sobretudo da animosidade acumulada contra os erros da governação do passado, João Lourenço encheu a voz contra a elite do seu próprio partido. E pôs a justiça no encalço da família de José Eduardo dos Santos e de alguns dos ex-poderosos seleccionados a dedo, fissurando o MPLA.
Os aplausos que se seguiram da população revelaram-se, entretanto, num sol de pouca dura. A indisfarçável protecção de actuais e ex-governantes e de membros influentes do seu próprio gabinete e as evidências de processos criminais arbitrários rapidamente começaram a alimentar a ideia de que João Lourenço usava o combate à corrupção como um projecto pessoal de preservação do poder. De tal sorte que não estaria disposto a limitar os meios para alcançar os fins. Mesmo que isso significasse a destruição de empresas consolidadas e a consequente colocação de milhões de angolanos no desemprego e na mendicidade. Ou seja, ainda que a luta pelo controlo e manutenção do poder o levasse a destruir a economia, já arruinada pela baixa do preço do petróleo e, a partir de 2020, pela pandemia da covid-19.
O início da irreversível derrocada seria, por isso, uma questão de tempo. Na transição para o terceiro ano de mandato, com o desemprego nos 34% e a pobreza extrema acima dos 40%, as greves e manifestações tomaram conta das principais cidades, particularmente de Luanda. E, nessa altura, João Lourenço já não tinha qualquer argumento convincente para refrear os ânimos da população. Descredibilizado o combate à corrupção, a narrativa da transparência já estava anulada por conta de outra prática que o próprio João Lourenço condenou e que o levou oficialmente a descontinuar contratos assinados por José Eduardo dos Santos: a adjudicação directa de grandes empreitadas e os vícios nos pouquíssimos concursos públicos. Várias análises independentes concluem que, em relação ao ano passado, por exemplo, pelo menos 85% dos contratos públicos foram por ajuste directo. A tentativa de convencer os angolanos de que não havia recursos também já estava comprometida com os escândalos quase diários de gastos de prioridade muito duvidosa. Um dos mais recentes foi a aquisição de dois edifícios por 114 milhões de dólares para a acomodação do Ministério dos Transportes. Segundo a imprensa angolana, um dos edifícios é propriedade de um amigo de longa data do próprio ministro dos Transportes, levantando dúvidas quanto à motivação e à transparência do negócio.
Tudo isso deixou o regime de João Lourenço sem respostas racionais para as reivindicações nas ruas. A solução teve de ser, por isso, o recurso à razão da força. Começou por reprimir violentamente manifestações, prendendo jornalistas, activistas e não faltaram relatos de mortes de manifestantes. Só que, em finais de 2019, a UNITA havia feito de Adalberto Costa Júnior o seu presidente. Carismático quanto baste e hábil comunicador (predicados inexistentes em João Lourenço), Adalberto Costa Júnior quebrou os preconceitos tribais e raciais atribuídos à UNITA e tornou-se num símbolo de esperança, aclamado até por militantes notáveis do MPLA. A partir daí, cada tropeção de João Lourenço passou a compensar directamente na popularidade do líder da UNITA, com a confirmação de sondagens independentes. Consistentemente, Adalberto Costa Júnior passou a ser colocado à frente do presidente do MPLA.
A reeleição de João Lourenço deixou assim de estar garantida, apesar do controlo absoluto da contestada Comissão Nacional Eleitoral. O regime teria de agir, montando um plano mais ambicioso de ataque ao processo democrático, o que implicaria a necessária instrumentalização de instituições estratégicas do Estado. O Conselho da República, órgão de consulta do Presidente para temas relevantes, apesar de justificado, deixou de ser convocado para que João Lourenço e Adalberto Costa não se sentassem na mesma sala. Na comunicação social, a censura foi reinstitucionalizada em níveis só comparáveis ao período da guerra. Os rostos mais importantes na oposição foram interditados nos órgãos públicos e televisões privadas de alcance nacional foram encerradas. No Tribunal Constitucional, a instância que valida os congressos dos partidos e resolve os contenciosos eleitorais, foi substituído um juiz-presidente menos confiável por um membro do bureau político do MPLA. No momento da sua saída, o despedido Manuel Aragão evocou o “suicídio do Estado Democrático”. Mas a mensagem ficaria mais clara logo a seguir. Menos de dois meses após a saída de Aragão, o Tribunal Constitucional anula o congresso que elegeu Adalberto Costa Júnior, por este alegadamente não ter anexado o averbamento de perda de nacionalidade portuguesa em tempo útil. Uma contestação que não partiu de qualquer dos candidatos derrotados, mas de supostos militantes que, segundo a UNITA, foram instrumentalizados pelo regime que, para o efeito, usou inclusivamente os serviços de inteligência.
É isso o que se passa em Angola. Tal como Abel Chivukuvuku, que viu o seu projecto político PRA-JA inviabilizado pelo Tribunal Constitucional, a tentativa de se anular Adalberto Costa Júnior não decorre de um processo jurídico. De ponta a ponta, é uma decisão exclusivamente política. Abel Chivukuvuku e Adalberto Costa Júnior são os dois opositores ao regime mais importantes do pós-guerra. Há que tentar travá-los a todo o custo, especialmente depois de terem anunciado a intenção de avançar juntos contra o MPLA numa plataforma. É o esforço derradeiro de endurecimento e de manutenção da autocracia em Angola.