As Nações Unidas e o dilema do poder no feminino
Numa era em que tanto se fala dos temas da paridade — algo que o próprio secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, se propôs a defender e avançar ainda durante o primeiro mandato — e da representação e participação das mulheres na política, falta ainda ao mundo dar o próximo passo.
No passado dia 27 de Setembro de 2021, os debates da 76.ª sessão da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (AGNU) chegaram ao fim. Numa sessão fortemente marcada pela necessidade de construir um sistema internacional mais resiliente no pós-pandemia e pelas crises climática, do Afeganistão e dos submarinos (entre a França, a Austrália, os Estados Unidos e o Reino Unido), cerca de 150 chefes de Estado e de Governo endereçaram, presencial ou virtualmente, a Assembleia. A sensação de normalidade regressou à sede da maior organização internacional do mundo — e, com ela, uma questão quase tão antiga (e pertinente) quanto a própria ONU: onde estão as mulheres?
Desde a sua concepção que as Nações Unidas e os Estados que a compõem pecam pela falta de mulheres em lugares de decisão. Dos 800 delegados presentes para a assinatura da Carta das Nações Unidas, durante a Conferência de São Francisco (Estados Unidos) em 1945, apenas oito eram mulheres; e, dos 50 países representados, somente 30 lhes garantiam direito de voto. Depois de muitos avanços, recuos e escândalos, a ONU mantém-se como o porta-estandarte da protecção dos direitos humanos a nível mundial — mas tem ainda muito caminho a percorrer em termos de direitos e representação feminina. Em toda a história da Assembleia Geral, segundo a ONU Mulheres, apenas quatro mulheres foram eleitas como Presidente; e, em pleno 2021, segundo a Associated Press, apenas 13 — menos de 10% dos líderes mundiais representados — falaram perante a Assembleia, mais quatro do que na sessão anterior. De momento, dos 193 Estados-membros da ONU, só 24 têm uma mulher como chefe de Estado ou de Governo; e a própria organização nunca teve uma secretária-geral — ainda que, em 2016, Irina Bokova da Bulgária, antiga directora-geral da UNESCO, e Helen Clark da Nova Zelândia, antiga primeira-ministra, tivessem chegado à ronda final para a selecção do 9.º secretário-geral da organização.
Numa era em que tanto se fala dos temas da paridade — algo que o próprio secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, se propôs a defender e avançar ainda durante o primeiro mandato — e da representação e participação das mulheres na política, falta ainda ao mundo dar o próximo passo. Ao endereçar o Conselho de Segurança durante a 76.ª sessão da AGNU, Kersti Kaljulaid, presidente da Estónia, realçou que “não é possível haver democracia, segurança ou desenvolvimento sem uma metade da humanidade”, referindo-se às mulheres e à sua vulnerabilidade no contexto mundial actual. Tal vulnerabilidade torna-se (ainda mais) grave quando o impacto de crises como a da covid-19 não é “neutro em género” e afecta desproporcionalmente mais as pessoas que se identificam como sendo do sexo feminino, especialmente no que diz respeito à violência contra mulheres e crianças, um dos grandes temas debatidos durante a sessão de 2020, com António Guterres a denominá-la “uma guerra oculta contra as mulheres”.
Ainda que toldado pela pandemia da covid-19, para as Nações Unidas, 2020 foi, sem dúvida, um ano de comemorações no que diz respeito aos direitos da mulher. Para além dos 75 anos da ONU, em Setembro, celebraram-se os 25 anos da Declaração e da Plataforma de Acção de Pequim, que, aprovadas consensualmente pelos Estados-membros da ONU, visavam garantir que existiria igualdade de género em todos os programas e políticas da organização; e, em Outubro, os 20 anos da adopção da Resolução 1325 do Conselho de Segurança sobre o papel das mulheres na prevenção e resolução de conflitos.
No entanto, agora, volvido um ano, a questão das mulheres volta a ser relegada para segundo plano, sendo somente referida a par da recuperação económica sustentável e inclusiva, nomeadamente na promoção de emprego para jovens (e mulheres). Passada toda a pompa e circunstância das comemorações, parece que a importância dos problemas das mulheres voltou à nota de rodapé (ou a um outro patamar igualmente recôndito, escondido). Aqui, a questão de quão benéfica seria uma maior representatividade e participação feminina na organização — e, indo mesmo mais longe, a de como seria se os Estados-membros que nela participam aplicassem políticas feministas tanto externa como internamente — urge. Por isso, uma vez mais, o mundo questiona-se: onde estão as (políticas das e para as) mulheres?