Fogo, artes e gastronomia: restaurante Âmago cria menu inspirado no renascer da cortiça queimada

Exposição Burnt Cork na galeria Made in Situ, em Lisboa, mostra peças de design feitas com a cortiça recuperada dos incêndios, cruzando-as com a música e a gastronomia: Marta e André do restaurante Âmago criaram um menu inspirado pela colecção e pela ideia da transformação pelo fogo.

Foto
Uma das sobremesas do jantar concebido pelo Âmago Clement Chevelt

Verão de 2017. Na região de Pedrogão Grande, os incêndios devoravam a paisagem e Portugal olhava, impotente, para o horror que ali se vivia. Um designer francês, Noé Duchaufour-Lawrence, entrava de carro no país para o qual decidira mudar-se e confrontava-se com esse espectáculo do fogo devorando as árvores e deixando atrás de si florestas negras. A experiência marcou-o profundamente e o seu mais recente trabalho, a colecção Burnt Cork, é o resultado disso: as peças, mesas e cadeiras, que agora se podem ver na galeria de Noé, a Made in Situ, em Lisboa, foram esculpidas a partir da cortiça queimada nos incêndios.

Ao decidir viver em Portugal, Noé, que mantém o seu atelier e uma equipa em Paris, queria transformar a sua forma de trabalhar, dando-lhe outro tempo e outra profundidade. Encontrou aqui materiais e práticas artesanais que lhe permitem essa respiração mais próxima das coisas. Burnt Cork é a sua segunda colecção, depois de Barro Negro, e, tal como já acontecia com esta, o designer apresenta-a em cruzamento com outras linguagens artísticas, em particular com a música de Luís Clara Gomes (Moullinex).

Foto
No início, quando a natureza ainda está verde Clement Chevelt

A par disso, e porque a pandemia já o permite, está a organizar alguns jantares, pensados e preparados por Marta Caldeirão e André Coelho, do restaurante Âmago, vizinho da Made in Situ. Marta e André criaram um menu inspirado também pela colecção e pela ideia da transformação pelo fogo de um material que, longe de ter sido destruído, renasce agora pelas mãos de Noé.

Uma das premissas do trabalho de Noé em Portugal é a de trabalhar com artesãos e pequenas indústrias portuguesas. Assim, em Outubro de 2018 foi até Faro para conhecer a NF Cork, uma produção familiar de cortiça que tem à frente a Tânia e o Nuno e aí encontrou uma pilha de cortiça queimada, que, depois de ter protegido os sobreiros durante os incêndios, não teria aproveitamento. Decidiu usá-la nas suas peças. Com a NF Cork, criaram os blocos, misturando grânulos de cortiça mais grossos com outros mais finos, diferença que intencionalmente foi deixada visível nos objectos finais.

Foto
O prato de lula, aipo e maçã, a pensar na estrutura da cortiça Clement Chevelt

Curiosamente, quando olhamos para as formas orgânicas e sensuais das cadeiras e mesas desenhadas pelo francês (e esculpidas com a tecnologia da empresa Granorte) não vemos nelas sinais das cinzas. O processo de transformação, explica Noé, leva a que esse queimado desapareça – algo que, precisamente por ser real, optou por manter. O incêndio vivido por esta cortiça sobrevive agora apenas nas histórias que sobre ela se contam.

É, inevitavelmente, esse o tema das conversas à mesa no primeiro jantar Made in Situ. Quando a galeria foi pensada, já havia a ideia de vir a cruzar o trabalho de Noé com a gastronomia, para o que foi construída uma pequena cozinha. A pandemia só agora permitiu pôr em prática a ideia, e o restaurante Âmago, pela proximidade física e de forma de pensar, foi a escolha evidente, tendo-se estreado, na altura da abertura da exposição, com um pop-up na rua em frente à galeria.

Os dois chefs criaram um menu com cinco momentos, todo ele também relacionado com a história do fogo e da transformação da cortiça queimada em peças de design. No primeiro snack, com figos e flores sobre pedras e no meio de fumo, a natureza ainda está verde; depois, à medida que a refeição prossegue, os sabores fumados e as cinzas começam a surgir. Um dos pratos mais surpreendentes é o que junta lula, aipo e maçã, num design que remete para a textura dos blocos de cortiça – conseguindo a proeza de não deixar que o conceito se sobreponha ao sabor, o que o torna ao mesmo tempo interessante e saboroso.

Foto
Clement Chevelt

Ao design e à gastronomia junta-se neste projecto a música – tanto nos filmes que são feitos para cada exposição como no próprio espaço expositivo. O encontro inicial entre Noé e Luís Clara Gomes deu-se com a exposição anterior, dedicada ao barro negro, cujo ambiente sonoro foi já criado pelo músico. Desta vez, para a cortiça queimada, Luís convidou a harpista Angélica Salvi. “A cortiça que ardeu é algo com uma carga dramática muito profunda”, explica Luís. “É a morte e da morte constrói-se algo que sai das cinzas e atinge o sublime. Achei que a harpa tinha essa ligação a algo etéreo.”

Para o compositor, este cruzamento de linguagens é, ao mesmo tempo, natural e estimulante. Construir música a partir de peças de design faz sentido porque “a música amplia os sentimentos que as peças provocam”, mas, admite, seria “igualmente interessante o exercício contrário: partir da música para criar peças de design”.

Sugerir correcção
Comentar