A edição e a publicação de artigos científicos
A suposta “duplicação” de artigos no currículo de Raquel Varela gerou muita discussão sobre edição e publicação de artigos científicos. Alguns aspectos necessitam de ser clarificados.
A recente polémica sobre a suposta “duplicação” de artigos no currículo de Raquel Varela (autora que não conheço pessoalmente e que trabalha numa área totalmente distinta da minha) gerou muita discussão, nem sempre bem informada, sobre edição e publicação de artigos científicos. Alguns aspectos necessitam de ser clarificados. É para essa clarificação que este artigo pretende contribuir, procurando uma discussão que deve ser feita em termos gerais.
Quando eu e outros colegas íamos começar o último ano do curso de Física no Instituto Superior Técnico, em 1996, o recentemente falecido e nosso saudoso professor Jorge Dias de Deus levou-nos a participar numa conferência internacional cuja organização ele coordenava. Foi a primeira conferência em que participei: pude ver professores meus a apresentarem palestras num contexto muito diferente do que o que eu estava habituado; pude também ver ao vivo alguns físicos bastante reputados, professores nas melhores universidades, cujo nome eu conhecia dos livros. E pude aperceber-me do respeito com que tratavam o Dias de Deus - era claramente o físico português mais conhecido na conferência. Perguntei-lhe por que não seria ele também orador na conferência, uma vez que toda a gente o conhecia. Ele olhou-me, como se me fosse dar uma lição, e respondeu-me: “O organizador de uma conferência não é orador. Nunca!”
Refletindo um pouco, em ciência, mais do que em qualquer outra atividade, o que conta é o reconhecimento dos pares. É muito prestigiante ser-se convidado para ser orador numa conferência internacional. É bastante prestigiante submetermos uma proposta para uma comunicação numa conferência e ela ser aceite por um comité científico independente. Já não é especialmente prestigiante se a nossa proposta para uma palestra for aprovada por um comité de que fazemos parte - especialmente se a isto juntarmos responsabilidades na organização.
Segui sempre este princípio do Dias de Deus, e nunca fui orador nas conferências de cuja organização fiz parte até hoje. Sempre vi esta regra ser seguida em todas as conferências em que participei.
Recordei-me dela a propósito da recente polémica sobre o currículo da historiadora Raquel Varela, espoletada por um artigo do PÚBLICO falando vagamente em artigos repetidos no currículo da historiadora. Numa resposta, Raquel Varela justifica-se dizendo que há livros por si editados que incluem artigos por si publicados, resultando daí a aparente “duplicação”. Não se trata, no entanto, de um ou outro caso esporádico: de acordo com o esclarecimento público entretanto prestado pela sua (antiga) instituição de acolhimento, uma parte muito significativa dos seus trabalhos mais recentes são “duplicados”. Sendo este o caso, Varela não está a seguir o “princípio do Dias de Deus” adaptado à edição de livros: se sou editor, se escolho o que é ou não publicado, não vou aproveitar para publicar também. Parece-me um mau procedimento, pelas razões que apontei; mas é aos pares de Raquel Varela, dispondo de toda a informação, que cabe avaliá-lo. Principalmente aos elementos dos júris dos concursos a que se candidata.
Não pretendo com isto criticar a decisão do Instituto de História Contemporânea: de acordo com a informação fornecida, terá havido outros motivos para retirar a confiança à candidata, nomeadamente a sua recusa em prestar esclarecimentos. No entanto - e isto deve ficar bem claro - o procedimento de Varela não constitui de forma nenhuma uma fraude. A edição e a autoria de artigos são trabalhos diferentes, e devem ser mencionados separadamente no currículo.
Seguiram-se, porém, reações extremadas, a atacar e a defender Varela. A meu ver, a discussão deste caso não deve ser feita na praça pública. Não estamos em condições de fazer bons juízos, por desconhecermos não só todos os pormenores relevantes mas também quão habitual é este procedimento de Raquel Varela entre os seus pares. Não me admiraria nada se alguns dos seus colegas que mais a defendem procedessem de modo análogo e isso fosse para eles bastante usual.
Julgo que, em lugar de uma discussão fulanizada sobre o currículo de uma pessoa, haveria mais a ganhar se se promovesse uma investigação e um subsequente debate mais informado sobre quão habitual é este procedimento em certos sectores académicos portugueses, em diferentes áreas científicas e em diferentes gerações. Talvez se chegasse à conclusão de que professores como o Jorge Dias de Deus há muito poucos.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico