Justiça europeia anula acordos de comércio e pesca entre UE e Marrocos
Tribunal dá razão à Frente Polisário mas não ordena a anulação imediata dos pactos, considerando que isso teria graves consequências. Bruxelas e Rabat garantem que vão manter parceria.
Como acontecia em anteriores convénios, os acordos de comércio e pescas assinados em 2019 entre a União Europeia e Marrocos incluíam o acesso a águas do Sara Ocidental – e como todos até agora, foram negociados apenas com Marrocos, sem diferenciar o estatuto político da região ocupada. Entendendo que não foi tido em conta o consentimento dos sarauís, o Tribunal Geral da UE anulou esta quarta-feira os acordos, dando razão ao recurso da Frente Polisário.
A decisão era esperada há meses e a sua iminência contribuiu para aumentar a tensão entre Rabat e Bruxelas e, em particular, entre os governos de Marrocos e de Espanha. Outros países, como Portugal, são afectados pela anulação dos acordos, mas Espanha era, de longe, o maior beneficiário: dos 128 barcos autorizados a pescar nas águas reivindicadas pela monarquia do Magrebe, 98 têm bandeira espanhola. Mais de 90% das pescas incluídas no pacto têm origem em águas sarauís – em troca do acesso, a UE paga a Marrocos 50 milhões de euros por ano durante os quatro anos de vigência dos acordos.
Em Maio, quando deixou de patrulhar as suas fronteiras com Ceuta e promoveu a entrada de milhares de pessoas no enclave espanhol, Marrocos tinha em mente castigar Madrid por permitir a Brahim Gali, líder da Frente Polisário, ser internado num hospital espanhol, mas também pressionar a UE, através de Madrid, antes desta decisão, que esteve prevista para Junho.
Tendo em conta a jurisprudência dos tribunais da UE, a sentença não surpreende. Mas nem por isso deixa de ser um golpe duro para Rabat e para as suas relações com Espanha e com a UE.
O movimento independentista sarauí defendia que a UE e Marrocos “carecem de competência para negociar acordos internacionais aplicáveis ao Sara Ocidental em nome da população do território, que é representado pela Frente Polisário” (reconhecida pelas Nações Unidas como seu representante legítimo). A UE, por seu turno, afirmava que a Polisário não tem legitimidade nem capacidade para recorrer ao Tribunal Geral, argumentos recusados pelos juízes.
Quanto à questão de fundo, os juízes admitem que a UE e Marrocos podem celebrar um acordo que se aplica no Sara Ocidental desde que “respeitem a exigência relativa ao consentimento do povo do Sara Ocidental”. A UE argumentava que tinha consultado a “população afectada” e obtido a sua permissão, mas o Tribunal considera que “não pode considerar-se que as acções empreendidas pelas autoridades da UE antes da celebração dos acordos tenham permitido obter [esse] consentimento”.
Segundo a associação Western Sahara Resource Watch (WSRW), em vez de procurar permissão junto de sarauís, a UE teve contactos com 18 políticos e empresários marroquinos que defenderam as vantagens dos acordos. A organização, que denuncia a exploração dos recursos naturais do Sara, acusa mesmo a Comissão Europeia de ter partilhado com o Parlamento Europeu e com o Conselho uma lista de “partes interessadas consultadas” com mentiras, onde surgiam 94 grupos, incluindo a própria WSRW, que nunca participaram no processo de consulta.
E ao contrário do que defendiam os Estados-membros, o Tribunal europeu discorda que a “situação particular” da antiga colónia espanhola tornasse “impossível na prática” conseguir a concordância do povo do Sara. Ocupado por Marrocos desde 1975, o Sara Ocidental ainda espera pelo referendo sobre a autodeterminação decidido pela ONU, mas nunca realizado, com a monarquia marroquina a opor-se sempre às condições para a consulta. Para as Nações Unidas, a região é considerada como “um território não autónomo pendente de descolonização”.
Ganhar tempo
“Tomaremos as medidas necessárias para garantir um quadro jurídico que garanta a continuidade e estabilidade das relações comerciais entre a UE e o Reino de Marrocos”, reagiram, num comunicado conjunto, o Alto-Representante para a Política Externa e de Segurança da UE, Josep Borrell, e o ministro dos Negócios Estrangeiros marroquino, Nasser Bourita.
Esta sentença é passível de recurso para o Tribunal de Justiça da UE, instância já deu razão à Frente Polisário em várias ocasiões. O Tribunal do Luxemburgo não exige a aplicação imediata da sua decisão, para “preservar a acção externa da União e a segurança jurídica dos seus compromissos internacionais”, mas determina que os acordos só podem continuar a aplicar-se durante dois meses.
Em caso de recurso, a decisão fica suspensa e os pactos permanecem em vigor. De acordo responsáveis do Ministério dos Negócios Estrangeiros espanhol, ouvidos pelo diário El País, o Governo de Pedro Sánches está a contar que esse recurso avance e permita deixar tudo na mesma pelo menos durante um ano, tempo que Bruxelas usará para encontrar uma solução que permita contornar a decisão judicial.
Na prática, é o que tem acontecido, com sucessivas decisões da Justiça europeia a darem razão à Polisário e a União a responder com novos acordos que acabam por ter o mesmo fim que os anteriores.