Conferência sobre o Futuro da Europa: Agora “vão ouvir-nos na UE”, diz Kacper Parol, polaco, 23 anos
No primeiro painel de cidadãos da Conferência sobre o Futuro da Europa, europeus de todas as idades e origens conheceram-se, trocaram experiências e emocionaram-se, enquanto discutiam a sua visão para a UE.
No que podia ser só mais um dia no Parlamento Europeu, em Estrasburgo, França, as cadeiras do hemiciclo foram ocupadas por europeus comuns, chamados a reflectir sobre o presente e o futuro da União. “Quem está entusiasmado por estar aqui?”, perguntou na sessão inaugural Kathrine Collin Hagan, moderadora das sessões conjuntas. A grande maioria dos participantes levantou-se em resposta afirmativa. Juan Milla Olaya não foi um deles.
Espanhol de 31 anos, Milla Olaya revelou a sua desconfiança perante os painéis da conferência e o seu papel no futuro da política europeia. Crítica a actuação da UE em vários campos, da economia, passando pelas políticas sociais e pela democracia das suas instituições. No primeiro plano, considera que a UE retira “muita soberania aos países”. Também em questões de justiça social vê uma necessidade de mudança, defendendo que o bloco deve “garantir a todos os cidadãos residentes na Europa condições básicas e os seus direitos humanos”, em particular no contexto da migração.
Apesar de não encarar a União Europeia de forma positiva e de percepcionar um futuro “negro”, admite estar a aberto à possibilidade de mudanças positivas.
Milla Olaya foi um dos 200 cidadãos convidados para este primeiro painel, que decorreu entre 17 e 19 de Setembro, o primeiro de quatro, que irão debater as ideias dos europeus para a Conferência sobre o Futuro da Europa. Fora dos momentos de trabalho, os convidados foram tirando fotografias às credenciais que levavam ao peito, ao hemiciclo, à bandeira e ao edifício Louise Weiss.
Dos vários participantes ouvidos pelo PÚBLICO, entre os 20 anos e os 80 anos, as respostas foram coincidindo: embora pairassem algumas dúvidas quanto ao impacto dos seus contributos, estavam expectantes, gratos e surpreendidos com a experiência.
Contributo dos cidadãos
No total, 800 cidadãos da União Europeia irão participar nos painéis – um terço são jovens com idades entre os 16 e 25 anos. Foram seleccionados de forma aleatória para representar a diversidade dos 27 Estados-membros quanto à origem geográfica (nacionalidade e origem rural ou urbana); género; idade; contexto económico e nível de educação.
Os cidadãos vão discutir áreas fundamentais da UE e o que querem para o seu futuro. As conclusões vão ser transformadas em recomendações colectivas, a apresentar no plenário da conferência, na Primavera de 2022, onde estarão presentes membros do Parlamento Europeu, da Comissão Europeia e do Conselho da Europa, juntamente com representantes de todos os parlamentos nacionais. Na última etapa, as propostas serão analisadas pelos presidentes das três instituições da união – e eventualmente adoptadas.
A UE quer “começar a ouvir as vontades, sonhos, e medos sobre o [vosso] futuro enquanto [seus] cidadãos” e “conduzir a Europa na direcção que querem”, afirmou, no discurso de abertura, Guy Verhofstadt, co-presidente do Conselho Executivo da conferência e eurodeputado. Este momento, disse, chegou porque são precisas “mudanças profundas” para “a Europa corresponder [às expectativas] dos seus cidadãos”.
Trata-se assim de um “momento histórico”, afirmou, por contar com o contributo dos cidadãos e implicar a colaboração das três instituições. Um processo que ganha forma através da Conferência sobre o Futuro da Europa, composta pelos Painéis dos Cidadãos e por uma plataforma digital multilingue.
Para a discussão dos painéis, os participantes dividem-se em subgrupos fixos, com a orientação de facilitadores externos à UE. Começando por elencar os problemas que identificavam no seu quotidiano, os participantes reflectiram sobre as expectativas que têm para a UE daqui a 30 anos. Passaram depois para o debate sobre os temas deste painel: uma economia mais forte, emprego, justiça social, educação, cultura, juventude, deporto e transformação digital, ramificadas em subtópicos mais concretos que irão guiar os trabalhos das duas próximas sessões.
O segundo painel vai abordar a democracia e os valores europeus, direitos, Estado de direito e segurança. No terceiro, estarão em análise as alterações climáticas, o ambiente e a saúde; no último, a UE no mundo e a imigração.
A UE no presente
Os participantes foram encorajados a falar a sua língua materna nas sessões conjuntas e dos grupos, pois para cada língua havia um intérprete a traduzir em tempo real. A diversidade resultou num cruzamento das diferentes 24 línguas oficiais do bloco, dentro e fora das salas dos grupos, mesclando-se por vezes num conjunto de sons imperceptíveis.
Num momento de pausa, Stefania Moro, italiana de 49 anos, revia as suas notas e escrevia no seu caderno, confessando-se muito entusiasmada com a iniciativa. Especialmente “por poder participar e ver como funciona por dentro” a União Europeia. Acredita que os painéis são uma “óptima oportunidade”, que as propostas dos cidadãos “vão ser ouvidas” e, pelo menos algumas, “vão ter impacto” na política europeia.
Questionada sobre o que mudaria na actuação do bloco, Moro disse querer ver mudanças no campo da justiça social e do emprego, defendendo ainda uma abordagem mais unida e uniforme entre os Estados-membros. Aliás, vários participantes expressaram o desejo de ver uma maior convergência e equidade entre os Estados-membros, nomeadamente nas áreas da economia, educação e emprego – sobretudo entre os jovens.
Sandro Almeida, de 30 anos, português e residente na Alemanha, falou na necessidade de trabalhar a solidariedade e igualdade entre os países. Além disso, a questão do emprego nos jovens, em particular, é para si um dos tópicos mais sensíveis, uma vez que sentiu na pele a dificuldade do acesso ao emprego, quando se viu obrigado a emigrar durante a crise de 2011-2014. O esloveno Vladimír Golier, de 31 anos, tem uma visão semelhante, defendendo a criação de mais empregos, com melhores condições e estabilidade para os jovens.
Por sua vez, Filip Hofman, polaco de 20 anos, manifestou a sua preocupação com a educação e a tolerância, referindo-se, por exemplo, às violações dos direitos da comunidade LGBTQ+ na Polónia. Kacper Parol, activista polaco de 23 anos, referiu a mesma inquietação relacionada com a educação, à qual soma o desejo de ver mudanças na economia europeia, tal como Nedelina Stoyanova, 27 anos, da Bulgária.
Possíveis direcções
Além das discussões realizadas em grupo, a plataforma digital multilingue também é uma ferramenta e um elemento da Conferência sobre o Futuro da Europa. Até 17 de Setembro, mais de sete mil ideias foram partilhadas na plataforma, segundo o Secretariado Comum, um conjunto de funcionários que assiste o Conselho Executivo. Sandro Almeida, por exemplo, propôs na plataforma a criação de um canal mediático da UE, onde fossem divulgadas informações não só sobre o bloco, mas sobre os Estados-membros. Já Stefania Moro submeteu a ideia de uma reforma institucional da UE através da atribuição de mais competências ao Parlamento Europeu.
Para complementar as propostas e debates, um conjunto de peritos pintou um quadro geral para cada um dos tópicos em questão. Mas o debate não se fica por aí: a plataforma continua a ser palco de partilhas e sugestões. As ideias recolhidas no site sobre os temas deste painel foram organizadas em cinco tópicos principais, divididos em subtópicos.
No campo económico, propôs-se repensar o sistema tributário (para um mais igualitário entre os Estados-membros); um possível salário mínimo universal; uma economia digital, sustentável e com um foco na inovação e competitividade. No mercado laboral, os pontos centrais são o acesso ao emprego (em particular dos jovens) e a digitalização do sector. Quanto à transformação digital, as propostas apontaram para um futuro digital mais seguro (englobando a cibersegurança e protecção de dados), ético e democrático.
Já no âmbito de uma sociedade mais justa, propôs-se mais justiça, igualdade e melhores condições para todos os europeus, incluindo no acesso ao alojamento e desporto. Para a educação, falou-se do reforço do intercâmbio cultural de estudantes; do reforço da identidade de europeia; da harmonização e digitalização do ensino e da qualidade e acesso à educação.
Democracia deliberativa
Este processo de debate que compõe a conferência insere-se na ideia de democracia deliberativa, conceito várias vezes referido durante os dias de trabalho no Parlamento Europeu. Isto significa que “as pessoas, não importa” de onde vêm ou quais as suas características sociodemográficas, “reúnem-se e partilham os seus diferentes pontos de vista para encontrarem uma solução comum”, explicou ao PÚBLICO Jacob Birkenhäger, um dos facilitadores que orientou as sessões conjuntas do painel.
“Quando se juntam tantos cidadãos que nunca se conheceram”, de “países e percursos de vida diferentes”, “vai sempre resultar se lhes for dada a oportunidade para terem uma boa discussão”, o que é “sempre produtivo e bom para as pessoas”. Este tipo de exercício também é benéfico para incentivar “um sentimento de [pertença à] Europa”, considera Birkenhäger.
Fazendo um balanço dos primeiros dias, salientou a “qualidade da discussão”. E de acordo com o que recolheu dos restantes facilitadores que acompanharam os grupos, “os cidadãos abriram-se mesmo uns com os outros, estavam dispostos a partilhar os seus pontos de vistas, emoções e as suas histórias”.
Impacto pessoal
Para alguns membros do painel, a oportunidade de poderem partilhar a sua experiência e conhecer pessoas dos quatro cantos da união foi um catalisador pessoal e emocional. Sandro Almeida emocionou-se com o “privilégio” de ter sido convidado. Hofman sentiu ser um ponto de viragem na sua vida, tendo depois concorrido (e sido seleccionado) para representar os cidadãos deste painel. E Eduardo Besa, espanhol de 75 anos, confessou na última sessão do painel, perante os restantes cidadãos, ser “um pouco chauvinista”, mas disse querer esforçar-se para “ser mais europeu”.
Kacper Parol foi mais longe e garantiu ao PÚBLICO ter agradecido pessoalmente a Guy Verhofstadt por poder estar presente e representar os jovens que não se identificam com o partido que governa a Polónia, o Lei e Justiça (PiS). No final da última sessão, Parol foi escolhido para ser um dos 20 representantes dos membros do primeiro painel.
Depois de saber da sua selecção, admitiu estar ansioso para que “os deputados do PiS ouçam uma voz polaca em defesa da tolerância e dos direitos humanos”. Se até então não era ouvido no seu país, considera que agora “vão ouvir-nos [aos jovens polacos] na UE”, ambicionando que o seu país “participe mais do que nunca, para criar estratégias ambientais, cooperar e promover os valores europeus”.
Enquanto “porta-voz” dos cidadãos europeus deste painel, do total de 80, o polaco vai participar no plenário da conferência, juntamente com os restantes membros das três instituições da UE. Vasco Fernandes, jovem português de 21 anos, também foi um dos seleccionados. Ao PÚBLICO disse estar feliz, mas espera “fazer jus” ao desafio de “ter um bom diálogo” no plenário. “Não estava à espera de ver isto ao nível da União Europeia”, o que lhe “dá muita esperança”, acrescentou.
O futuro da UE
Ainda assim, mesmo depois dos três dias de trabalho as dúvidas não se desvaneceram e os participantes continuam a questionar o impacto e alcance dos seus contributos. Alguns gostariam de ver uma UE mais unida em várias áreas. E acreditam que uma mudança mais profunda, se acontecer, vai ser morosa devido à complexidade e diferentes realidades dos Estados-membros.
Mas há um desejo de ver este tipo de exercícios continuarem. Rosa Flores, de Espanha, 40 anos, considerou ser “muito gratificante” terem chamado pessoas sem conhecimento sobre as políticas da união. “Pela primeira vez estamos a participar”, considerou.
Também os restantes participantes ouvidos pelo PÚBLICO salientam a boa experiência de terem conhecido pessoas e realidades diferentes, sentindo ainda um esforço por parte da UE em ouvir as suas populações. Nos casos dos jovens polacos e da jovem búlgara Stoyanova, tinham receio de não se sentirem integrados, mas ficaram positivamente surpreendidos por se sentirem iguais aos restantes membros dos outros países.
Milla Olaya, por seu lado, continua sem ver uma luz no futuro da UE, considerando haver demasiados interesses a pesar nas decisões. Reconheceu, ainda assim, a importância do painel: “Penso que seria bom seguir por esta linha se [a UE] quer construir uma união coesa entre os cidadãos. Oxalá isto se torne a norma e não a excepção que é hoje em dia”.
O PÚBLICO viajou a convite do Parlamento Europeu