O longo caminho de Victor de Oliveira à procura da sua identidade

Deste sábado e até 22 de Setembro, o actor e encenador apresenta no TBA, Lisboa, um solo em que reflecte sobre a sua identidade: um homem mestiço, crescido entre dois mundos, à procura de pertencer.

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Victor de Oliveira começa por se apresentar. “Sou luso-moçambicano, luso-francês, franco-moçambicano, afro-europeu, mulato, mestiço, mais para o branco, mais para o negro”, diz em palco, nos primeiros minutos de Limbo. Tudo pode ser verdade, “mas nada corresponde exactamente à verdade”. Porque nada disto nos ajuda a perceber quem é Victor, actor e encenador nascido em Moçambique, crescido em Portugal, mais de metade da sua vida a residir e a trabalhar em França. E, portanto, para nos tentar dar algumas pistas sobre quem é e sobre o processo de construção e de investigação da sua identidade, começa a levar-nos para trás, para as ramificações da sua árvore genealógica, feita de constantes fluxos entre Portugal, Moçambique, Índia e China. Feita de colonos e de colonizados. E desta condição permanente de “entre-dois”, como lhe chama: entre dois países, entre duas condições, entre negros e brancos, com mais privilégios do que uns e menos do que outros, com um sentimento de pertença sempre posto em causa.

Há algum tempo que Victor de Oliveira vive com a ideia de colocar Limbo em palco (Teatro do Bairro Alto, Lisboa, deste sábado e até 22 de Setembro). Sobretudo desde que foi crescendo a aposta nas suas próprias criações e percebendo com maior clareza aquilo que lhe é essencial — a relação com o país onde nasceu, com a família, com esta sensação de se sentir entre dois mundos. “Já não vivo em Portugal há muitos anos e, talvez justamente por isso, hoje permito-me ter uma distância ao olhar a relação do país com as suas ex-colónias ou com a lusofonia”, explica ao PÚBLICO. “Antes não tinha essa distância.”

Não é apenas essa distância a justificar o parto de Limbo em 2021. Este é um espectáculo que resulta de todo um demorado caminho de encaixe da multiplicidade de origens de Victor de Oliveira e de uma história familiar que hoje “é uma força” e algo que carrega consigo com orgulho. “Obviamente enquanto criança era muito mais complicado, mas resolvi essas questões. Só que há pessoas que ainda estão nesse limbo, nessa no man’s land identitária.” E é também o conflito geracional apenso a estas palavras que é trazido para a peça, as “discussões acesas” com o pai — filmado para o espectáculo, mas que o criador sabe, com tristeza, que não aceitará sentar-se na bancada para assistir a uma peça que põe em causa toda a sua biografia. “Mesmo quando há discussões que tento fazer dentro da minha família ou com os meus amigos”, lembra, “chega um momento em que se tornam estéreis, porque do outro lado há uma não aceitação, uma vontade de não querer ver.” Victor inquieta-se com a ideia de que alguém crescido num país colonizado, sabendo que enquanto mestiço tinha mais direitos do que um pai ou uma mãe negros, viva em paz com esse passado. “Darmo-nos conta de que aquilo que vivemos [durante décadas] era uma grande mentira é extremamente brutal. E quem sou eu para dizer ao meu pai, a um senhor de 87 anos, que viveu uma mentira a maior parte da sua vida?”

A sua luta passa, por isso, para o palco, um lugar onde pode propor perspectivas e reflexões, desfiando narrativas da sua vida e da sua família para que cada um interprete e se relacione à sua maneira. E embora Victor se diga resolvido, assumindo que essa resolução nunca é total quando implica uma ferida aberta familiar, as várias situações que descreve da sua infância e da adolescência são matéria traumática. Fala-nos de um episódio no Barreiro quando, no regresso da escola, desviou os amigos do caminho habitual ao perceber que iam cruzar-se com o seu pai, de tez mais escura do que a sua — “a vontade de pertença era tão grande”, recorda hoje, “que se fazia coisas absolutamente terríveis como esconder o próprio pai” —; quando ao passear com o irmão se viram perante um cão ameaçador e o dono interveio para os descansar dizendo “Não te preocupes que ele só ataca pretos”; quando descobriu que se tivesse nascido uns dias mais tarde, no 10 de Junho, era possível que se tivesse chamado Luís Vaz de Camões Raça de Oliveira.

A partir de entrevistas com familiares e amigos, Limbo põe em palco todo um “longo percurso” de procura de identidade de um indivíduo que tem de lidar com a História dos países onde viveu e vive, mas também com todas as histórias daqueles de quem descende. “A minha identidade é múltipla”, sabe Victor de Oliveira, “mas continuo ainda a cavar e a tentar encontrar-me, porque me lembram constantemente e estou sempre a ser levado para o lugar onde nasci, o lugar onde vivi ou os meus pais, tudo coisas que deveriam ser alegres e fortes e não um peso.” Em muitos momentos, admite, sente-se cansado de lidar repetidamente com as mesmas questões. Mas o seu optimismo convence-o de que poderemos estar a viver o fim de um ciclo. E de que uma criança não tenha de continuar a questionar-se acerca da legitimidade de ter por heróis os Bee Gees e James Brown, quando quer ser ambos e ambos lhe parecem demasiado distantes de si.

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