Diálogos de boa vizinhança com os taliban
O Afeganistão é de enorme importância estratégica para a China, tanto pela dimensão securitária como económica, possibilitando negócios, investimento, obtenção de recursos e vantagens geopolíticas.
Enquanto o mundo assiste à saída inglória dos Estados Unidos do Afeganistão, e ao regresso dos talibãs, a República Popular da China (RPC) reconfigura as suas relações políticas com este país vizinho. Alteraram-se as peças do jogo, abre-se um novo programa diplomático, tanto motivado por questões estratégicas, de contenção de ameaças, como de exaltação do “Sonho Chinês” da era de Xi Jinping.
Os livros de estratégia de Sun Tzu, amarelecidos pelo tempo e avermelhados pela política, ensinam que é no meio do caos que se encontram as oportunidades. É esta a formula que seguem os dirigentes máximos do governo chinês, aproveitando os passos em falso dos Estados Unidos. Servem ao povo os exemplos bem-sucedidos do ponderado “socialismo com características chinesas”, face ao decadente modelo global de ingerência americana. Um olhar pelos canais de informação chineses revela todo este triunfalismo, num esforço de alienação das massas humanas pela enzima do orgulho.
O Afeganistão é de enorme importância estratégica para a China, tanto pela dimensão securitária como económica, possibilitando negócios, investimento, obtenção de recursos e vantagens geopolíticas. Ciente deste quadro, o orientalista Owen Lattimore chamou a este país o “Pivot da Ásia”. Possui campos de petróleo e minerais raros, relevantes para a indústria de aparelhos eletrónicos, que o alargamento da Nova Rota da Seda, a partir do Paquistão, pode constituir um excelente atrativo. Não é de admirar que Pequim tenha encetado imediatos contactos diretos com os talibãs, embora há muito funcionassem diálogos bilaterais pelos canais secretos. Assim, no passado mês de julho, a convite da RPC, uma delegação de nove elementos deste grupo deslocou-se ao Império do Meio. Na cidade de Tianjin, o mulá Abdul Ghani Baradar troca impressões ao mais alto nível com o ministro dos negócios estrangeiros Wang Yi. O dirigente comunista saúda a comitiva, promete-lhes apoio, alinham-se as agendas. Apesar do caos e incerteza em Cabul, a embaixada chinesa mantém-se aberta, paira no ar a possibilidade do reconhecimento político do novo regime afegão.
As duas partes partilham a recusa de modelos de democracia liberal, estão à vontade com as limitações das liberdades individuais e dos direitos humanos. Pequim não quer a transformação da paisagem política afegã, mantem-se afastada — aparentemente — dos assuntos governativos internos daquele país. Nas suas dinâmicas internacionais, a China envolve-se em todos os quadrantes geográficos sem julgar governos, pactua com as elites sem requisitos de ordem política, mesmo que estejamos perante as piores ditaduras do planeta.
A verdade é que o novo contexto no Afeganistão está repleto de riscos para o governo de Xi Jinping. Trata-se de um país com muitas contradições, uma encruzilhada multitribal e multiétnica, cheia de senhores da guerra. Quem ali se intrometeu, tombou. A ordem habitual é a desordem, que por empréstimo das palavras de Thomas Hobbes, está num estado contante de conflitos “de todos contra todos”. Homens como o veneziano Marco Polo, no século XIII, ou o açoriano Bento de Góis, no século XVI, conheceram-lhe as entranhas. As caravanas de mercadores, carregadas de seda e outras preciosidades, estavam sempre expostas ao perigo dos salteadores. O português, disfarçou-se de mercador arménio, com o nome de Banda Abdulla — o “servo de Deus” — e só assim conseguiu circular sem sobressalto.
Hoje, nos mesmos lugares, proliferam as lutas tribais, o crime organizado, tráficos e o terrorismo, uma ameaça séria na região fronteiriça chinesa. É na língua de terra que liga os dois países — o corredor de Wakhan — com uma fronteira de 76 quilómetros, pela proximidade, que incidem as principais preocupações. A partir do território vizinho foram operando com o tempo células do PIT — Partido Islâmico do Turquestão (anterior ETIM — Movimento Islâmico do Turquestão Oriental), constituído por membros da etnia uigure, que defendem a independência da província de Xinjiang chinesa. Este movimento organizou ofensivas terroristas a interesses governamentais chineses a partir do exterior. Destaca-se, por exemplo, o ataque de 28 de outubro de 2013, junto à praça de Tiananmen, no coração de Pequim. Ainda que a presença de forças militares americanas no país vizinho nunca tenha sido muito bem vista por Pequim, não deixava de ser útil no efeito de contenção. Neste sentido, os novos contactos bilaterais são motivados, em primeiro lugar, por estas preocupações de segurança. Aliás, a criação da Organização de Cooperação de Xangai, em 2001, já tinha como objetivo central trazer o apaziguamento para uma região sempre em sobressalto.
A verdade é que o triunfo e regresso talibã pode levantar a moral dos muçulmanos na região, criando novas pressão no território chinês. Aconteceu o mesmo com a retirada das tropas soviéticas no Afeganistão (1989) e a independência do Tajiquistão (1991). Reavivam-se as velhas construções idealistas dos reinos e impérios islâmicos, afetos a uma mesma fé, libertos de povos e crenças de outras latitudes. Por exemplo, no século XIX, o aventureiro tajique Yakub Beg criou um reino islâmico — um Turquestão oriental — que incluía a atual província de Xinjiang, que seria derrotado pelas tropas imperiais chinesas. Por isso, o governo chinês quer que os “estudantes de teologia” afegãos eliminem as células do PIT e colaborem no projeto de unidade nacional chinês.
A verdade é que, ainda que os uigures chineses sejam muçulmanos, os talibãs parecem mais empenhados em defender os interesses geoestratégicos e geoeconómicos do que os irmãos de fé. Com os projetos de investimento, a possibilidade de reconhecimento político e um agendamento comum contra Washington oferecido ao novo regime, os chineses procuram capturar para si um importante parceiro regional com implicações na sua segurança interna.
Em muitos sentidos, parece que o governo comunista pretende reprimir os “terroristas maus” por intermédio de “terroristas bons”, na velha fórmula de dividir para reinar. A questão principal é saber se a chegada dos talibãs e a estratégia de boa vizinhança, que à partida servirá para estabilizar a região e a China, pode vir a ser efémera e apenas servir de trampolim para novas inquietações.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Nota: O texto vincula apenas a opinião do autor