“Não esqueçam o Afeganistão quando deixar de ser primeira página”: o testemunho de Aisha, de 22 anos, em Cabul
Aos 22 anos, Aisha Khurram teme perder o que mais valoriza: a oportunidade de estudar na sua cidade, Cabul. Com os taliban no poder, pede que o mundo não volte a esquecer os afegãos, abrindo portas ao caos. Um testemunho na primeira pessoa, construído a partir de entrevista.
“O meu maior receio é não poder estudar. As minhas aulas, e as de toda a gente, estão em suspenso. Estava prestes a licenciar-me, faltavam só dois meses. Muitos jovens estão agora em casa a questionar-se sobre o seu futuro académico e sobre como será a vida nos próximos meses. Todos temos medo de perder o nosso futuro, a nossa carreira, tudo o que construímos até hoje.
Apesar das declarações dos taliban, que garantem ter mudado e ser mais moderados, as pessoas estão na dúvida sobre aquilo em que devem, ou não, acreditar. Neste momento, nada é certo. Não sabemos como será o seu governo, como será viver num regime taliban.
Estamos bem em Cabul, o ambiente está calmo, mas de outras províncias chegam relatos diferentes, de maior violência. Os taliban estão a tentar convencer as pessoas de que a sua segurança será preservada. Afirmam conceder uma amnistia geral e não perseguir as pessoas que trabalharam para o governo ou com entidades estrangeiras.
Mas é óbvio que as acções valem mais do que as palavras. Até agora, não há nenhum alvo específico ou perseguido, mas o mais preocupante é a forma como os civis foram tratados no aeroporto, onde morreram 12 pessoas. Foram chicoteados, foram disparados tiros, foi horrível. E durante os protestos, em Jalalabad, pelo menos três pessoas foram mortas. Isto deixa-nos adivinhar como será o futuro governo taliban no Afeganistão. É preocupante.
O voo do Presidente: “uma vergonha e traição cruel”
Antes de tomarem o poder já todos sabíamos que poderiam chegar a Cabul a qualquer momento. O que não esperávamos era o ritmo e a rapidez com que aconteceu. Ninguém imaginava que chegassem tão cedo e que o governo abrisse espaço para que os taliban se instalassem.
O abandono do país pelo Presidente, Ashraf Ghani, foi uma vergonha e uma traição cruel para os afegãos que contavam com o governo num momento tão difícil e caótico como este. O vazio que o governo, em particular, o Presidente, deixou, permitiu a rápida tomada do poder pelos taliban. Sem uma traição tão brutal, diria eu, o caos não se tinha instalado desta forma. Os afegãos foram apanhados desprevenidos.
Deixar o meu país não faz parte dos meus planos, não penso nisso. Gostava de terminar a licenciatura e, caso tudo corresse bem, começar a trabalhar em Cabul.
A postura do novo governo ainda não é conhecida, seremos esclarecidos assim que estiver formado. Perceberemos se será, ou não, inclusivo, e o quanto protegerá e respeitará os direitos humanos.
Os taliban alegam garantir os direitos das mulheres no quadro da sharia (lei islâmica), mas isto não é claro. É muito vago o que a sharia realmente significa para eles, e que papel entendem que as mulheres podem ter na sociedade. Preocupa-nos que duas décadas de progresso possam ser invertidas.
Não foram, até agora, definidas restrições sobre o vestuário. Algumas raparigas e rapazes saem de casa, em Cabul, e não mudaram o estilo de roupa. Mas, ao mesmo tempo, as mulheres usam mais o hijab. Se o uso do hijab se tornar na obrigatoriedade do uso de burqa, como na década de 90, a nossa liberdade de escolha fica comprometida. E isso traz-nos dúvidas sobre o que acontecerá no futuro, sobre a nossa liberdade para estudar, por exemplo.
As Nações Unidas tinham um papel fundamental a desempenhar e ignoraram-no durante muito tempo. Hoje o Afeganistão enfrenta uma grave crise humanitária que, por anos, não foi tratada como uma crise. E é avassaladora: as pessoas estão a morrer à fome, não têm abrigo, estão desalojadas e algumas delas estão a tentar desesperadamente deixar o país. Há uma avalanche de refugiados e deslocados internos.
Neste momento, a acção humanitária das Nações Unidas é necessária. E, seja qual for o futuro governo do Afeganistão, precisamos que a ONU assegure que os direitos humanos são protegidos, e não serão violados num regime taliban. Sinto que, de certa forma, a ONU me falhou.
O Afeganistão está a fazer a manchete dos jornais. Mas a minha mensagem para o mundo e, em especial, para os jovens, é que não esqueçam o Afeganistão quando deixar de ser primeira página. O futuro é incerto, mas o mundo deve permanecer ao lado dos afegãos, defender e proteger os nossos direitos. Talvez seja demasiado tarde para inverter o que aconteceu, mas nós, jovens, contamos com a comunidade internacional para que defenda os direitos humanos, além da política e dos interesses internacionais.
Estou preocupada. Quando o resto do mundo deixar de estar atento ao Afeganistão, essa será a oportunidade para que a nossa situação se agrave.”