“Não esqueçam o Afeganistão quando deixar de ser primeira página”: o testemunho de Aisha, de 22 anos, em Cabul
Aos 22 anos, Aisha Khurram teme perder o que mais valoriza: a oportunidade de estudar na sua cidade, Cabul. Com os taliban no poder, pede que o mundo não volte a esquecer os afegãos, abrindo portas ao caos. Um testemunho na primeira pessoa, construído a partir de entrevista.
“O meu maior receio é não poder estudar. As minhas aulas, e as de toda a gente, estão em suspenso. Estava prestes a licenciar-me, faltavam só dois meses. Muitos jovens estão agora em casa a questionar-se sobre o seu futuro académico e sobre como será a vida nos próximos meses. Todos temos medo de perder o nosso futuro, a nossa carreira, tudo o que construímos até hoje.
Apesar das declarações dos taliban, que garantem ter mudado e ser mais moderados, as pessoas estão na dúvida sobre aquilo em que devem, ou não, acreditar. Neste momento, nada é certo. Não sabemos como será o seu governo, como será viver num regime taliban.
Some teachers said goodbyes to their female students as everyone was evacuated from Kabul University this morning... and we might not see our graduation like thousands of students around the country.
— Aisha Khurram (@AishaKHM) August 15, 2021
Taliban are placed all over the city, just waiting for the right time...
Estamos bem em Cabul, o ambiente está calmo, mas de outras províncias chegam relatos diferentes, de maior violência. Os taliban estão a tentar convencer as pessoas de que a sua segurança será preservada. Afirmam conceder uma amnistia geral e não perseguir as pessoas que trabalharam para o governo ou com entidades estrangeiras.
Mas é óbvio que as acções valem mais do que as palavras. Até agora, não há nenhum alvo específico ou perseguido, mas o mais preocupante é a forma como os civis foram tratados no aeroporto, onde morreram 12 pessoas. Foram chicoteados, foram disparados tiros, foi horrível. E durante os protestos, em Jalalabad, pelo menos três pessoas foram mortas. Isto deixa-nos adivinhar como será o futuro governo taliban no Afeganistão. É preocupante.
O voo do Presidente: “uma vergonha e traição cruel”
Antes de tomarem o poder já todos sabíamos que poderiam chegar a Cabul a qualquer momento. O que não esperávamos era o ritmo e a rapidez com que aconteceu. Ninguém imaginava que chegassem tão cedo e que o governo abrisse espaço para que os taliban se instalassem.
O abandono do país pelo Presidente, Ashraf Ghani, foi uma vergonha e uma traição cruel para os afegãos que contavam com o governo num momento tão difícil e caótico como este. O vazio que o governo, em particular, o Presidente, deixou, permitiu a rápida tomada do poder pelos taliban. Sem uma traição tão brutal, diria eu, o caos não se tinha instalado desta forma. Os afegãos foram apanhados desprevenidos.
Deixar o meu país não faz parte dos meus planos, não penso nisso. Gostava de terminar a licenciatura e, caso tudo corresse bem, começar a trabalhar em Cabul.
A postura do novo governo ainda não é conhecida, seremos esclarecidos assim que estiver formado. Perceberemos se será, ou não, inclusivo, e o quanto protegerá e respeitará os direitos humanos.
Os taliban alegam garantir os direitos das mulheres no quadro da sharia (lei islâmica), mas isto não é claro. É muito vago o que a sharia realmente significa para eles, e que papel entendem que as mulheres podem ter na sociedade. Preocupa-nos que duas décadas de progresso possam ser invertidas.
Não foram, até agora, definidas restrições sobre o vestuário. Algumas raparigas e rapazes saem de casa, em Cabul, e não mudaram o estilo de roupa. Mas, ao mesmo tempo, as mulheres usam mais o hijab. Se o uso do hijab se tornar na obrigatoriedade do uso de burqa, como na década de 90, a nossa liberdade de escolha fica comprometida. E isso traz-nos dúvidas sobre o que acontecerá no futuro, sobre a nossa liberdade para estudar, por exemplo.
As Nações Unidas tinham um papel fundamental a desempenhar e ignoraram-no durante muito tempo. Hoje o Afeganistão enfrenta uma grave crise humanitária que, por anos, não foi tratada como uma crise. E é avassaladora: as pessoas estão a morrer à fome, não têm abrigo, estão desalojadas e algumas delas estão a tentar desesperadamente deixar o país. Há uma avalanche de refugiados e deslocados internos.
Neste momento, a acção humanitária das Nações Unidas é necessária. E, seja qual for o futuro governo do Afeganistão, precisamos que a ONU assegure que os direitos humanos são protegidos, e não serão violados num regime taliban. Sinto que, de certa forma, a ONU me falhou.
O Afeganistão está a fazer a manchete dos jornais. Mas a minha mensagem para o mundo e, em especial, para os jovens, é que não esqueçam o Afeganistão quando deixar de ser primeira página. O futuro é incerto, mas o mundo deve permanecer ao lado dos afegãos, defender e proteger os nossos direitos. Talvez seja demasiado tarde para inverter o que aconteceu, mas nós, jovens, contamos com a comunidade internacional para que defenda os direitos humanos, além da política e dos interesses internacionais.
Estou preocupada. Quando o resto do mundo deixar de estar atento ao Afeganistão, essa será a oportunidade para que a nossa situação se agrave.”