Moçambique, 1964: o início da luta armada de libertação
A militarização da sociedade, que vai caracterizar esta região do continente a partir da década de 1960, retrata uma época marcada pelo grande cisma entre o nacionalismo africano e a persistência de um desejo, por parte de projetos racistas minoritários, da permanência da presença colonial no continente
“Moçambicanas e Moçambicanos, operários e camponeses, trabalhadores das plantações, das serrações e das concessões, trabalhadores das minas, dos caminhos de ferro, dos portos e das fábricas, intelectuais, funcionários, estudantes, soldados moçambicanos no exército português, homens, mulheres e jovens, patriotas: em vosso nome, a FRELIMO proclama hoje solenemente a insurreição geral armada do Povo Moçambicano contra o colonialismo português, para a conquista da independência total e completa de Moçambique. O nosso combate não cessará senão com a liquidação total e completa do colonialismo português.”
Esta proclamação pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) marcou, simbolicamente, o início da luta armada em Moçambique, a 25 de setembro de 1964. Esta luta, que no lado português é conhecida como uma das frentes da guerra colonial, terminou a 7 de setembro de 1974, com a assinatura dos acordos de Lusaca, abrindo caminho para o cumprimento da promessa da independência do país, a 25 junho do ano seguinte. Se este objetivo foi alcançado, já a liquidação total colonial obriga a questionar o sentido do colonialismo e das suas heranças. Este artigo analisa, a partir da luta armada, 3 eixos principais: a penetração do moderno colonialismo e as raízes dos protestos anticoloniais; o contexto vivido na região e no continente africano, inserindo esta luta nos desafios emancipatórios globais; e finalmente, dar conta das várias frentes que ‘a luta armada’ integrou, espelho de sonhos de libertação, de muitas lutas que o projeto de descolonização ainda não realizou.
Mueda, junho de 1960 – na origem de um massacre brutal está a tentativa de controlar uma manifestação de camponeses, mulheres e homens desarmados que, no norte de Moçambique, apelavam a reformas que assegurassem um pagamento justo pelo trabalho e bens produzidos, assim como maior autonomia (uhuru). Como vários académicos têm sublinhado, este ato violento de repressão está na origem da FRELIMO, que por sua vez criou a principal estrutura para a insurreição armada contra o colonialismo português.
A moderna administração colonial portuguesa estabeleceu-se nos territórios que compõem hoje Moçambique a partir da segunda metade do século XIX, operando através de um conjunto de práticas coercivas que transformaram os africanos em súbditos nativos com obrigações, mas poucos ou nenhuns direitos. São disso exemplo as várias campanhas militares, verdadeiros exercícios de ocupação, pela força, do território. Este exercício transformou os africanos, de ‘donos da terra’ em estrangeiros num território agora gerido por normas e estruturas políticas exportadas da metrópole. Em paralelo, convém destacar que a penetração do moderno projeto colonial teria sido impossível sem a colaboração local. Como tem referido João Paulo Borges Coelho, a imagem estereotipada das imensamente superiores forças europeias que derrotam as pequenas, frágeis e desarticuladas resistências africanas, raramente corresponde à realidade. Muito mais próxima está a imagem dos oficiais europeus capazes de fomentar e gerir contradições internas, atraindo forças africanas para a sua órbita, fazendo-as lutar contra outras forças africanas a fim de instalar e preservar a ordem colonial em contextos recentemente ocupados politica e militarmente por Portugal. A história da moderna presença colonial portuguesa obriga a um exercício analítico que permita avaliar criticamente o peso da acumulação primitiva de mitos gloriosos de conquista que ainda estruturam a narrativa imperial portuguesa.
De entre as profundas transformações introduzidas pelo poder colonial esteve a reconceptualização do trabalho, um processo que expõe as contradições que estão na base do moderno Estado colonial. O projeto civilizacional proposto por Portugal, a partir da moderna conceção de cidadania – a oposição entre liberdade e direito ao trabalho - é despedaçada pela violência do regime de trabalho obrigatório. O trabalho obrigatório – o xibalo – vai ser a grande alavanca de exploração económica da colónia. No contexto das grandes plantações incluía a obrigação de plantar arroz, sisal e algodão, sendo este último destinado à exportação para a indústria têxtil portuguesa.
Este é o contexto do norte de Moçambique onde, a partir do final da II Guerra Mundial se assiste a um processo de emigração para as colónias vizinhas, sobretudo do Tanganica, Zanzibar e Quénia, como forma de escapar ao xibalo. Aqui, apesar de a vida também não ser fácil, as condições de vida e as possibilidades de ascensão económica e social eram melhores. No final da década de 1950, estes emigrantes integravam já diversas organizações nacionalistas, associações e clubes, nos quais homens e mulheres participavam. Em paralelo, vários dos emigrantes que regressavam a Moçambique a partir do Tanganica, almejavam mais autonomia e melhores condições económicas. Mueda simbolizou o fim do projeto colonial português em Moçambique e anunciou a turbulência política e militar que se seguiu. Sinalizou ainda, com veemência, que a resistência africana tinha atingido um novo patamar, convergindo exigências quotidianas com projetos políticos desenvolvidos em várias organizações cujas ligações políticas no continente sugeriam um outro mapa geopolítico. Porém, o regime português não estava sensível a estas transformações, com as notícias a insistirem em atribuir a autoria da revolta em Mueda a agitadores ‘estrangeiros’, uma interpretação que teve eco na versão da PIDE e que negava aos moçambicanos a capacidade para se auto-organizarem na luta pela autodeterminação.
Nos contextos do Sul, é notória a crescente oposição à situação colonial no mundo, posição política que se consolida, a partir de 1955, na Conferência de Bandung. Esta realidade, que tem como pano de fundo as pressões políticas e financeiras dos EUA e seus aliados, por um lado, e dos países socialistas (da URSS à China popular) por outro, foi fundamental no descolar dos processos de transição para as independências africanas. O movimento iniciado com Bandung representou a afirmação ousada de uma terceira força nos debates de assuntos mundiais, um espaço alternativo que vai apoiar as lutas nacionalistas que decorriam a Sul.
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