Mensagem a uma nova aluna de doutoramento
Enquanto cidadã ativa e participativa está atenta a estas discussões em torno do que é, e deve ser, a ciência em Portugal, mas não te percas nelas nesta fase.
Não digas a ninguém, mas escrevo-te nos intervalos de um painel que avalia candidaturas ao Concurso de Bolsas Individuais de Doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), a principal porta de entrada para a atividade científica em Portugal. Os resultados devem estar para sair, e logo saberás se começas ou não essa aventura. Este concurso nem costuma funcionar mal (dentro do género), e tem, comparativamente, uma taxa de sucesso boa. Claro que, consoante a resposta que receberes, ou concordas comigo, ou achas-me um idiota. É a diferença entre uma apreciação global e uma experiência pessoal; faz parte, nisto como em tudo o resto.
Repara que eu disse “atividade científica”, não “carreira”, nem “profissão”. Há pouco disso, mas esse é um tópico para outra altura. E, desculpa lá, tu já tens obrigação de o saber, mesmo que nunca ninguém to tenha expressamente dito. Pessoas de outras gerações talvez ainda entrassem nisto com algumas ilusões, mas vós? Basta olhar em volta, falar com os colegas mais velhos do laboratório onde já estás há um tempo. Sobretudo, ouvi-los. São, potencialmente, tu dentro de cinco, dez, 15 anos. Quero com isto dizer que fizeste mal em concorrer? Pelo contrário, fizeste muito bem! Desde que estejas contente com o projeto, com a equipa de orientação, com o grupo no qual vais trabalhar. Sobretudo: desde que esta tenha sido uma escolha consciente, porque queres mesmo evoluir e descobrir coisas novas. Não te peço que mapeies com rigor o teu percurso futuro (olha que é útil!), mas se tiveres concorrido por inevitabilidade, porque “não há mais nada” e “toda a gente concorre”, aconselho-te a pensar duas vezes antes de aceitar.
Seja como for esta é uma excelente oportunidade. Não se ganham fortunas, mas também não é mau de todo, e terás (espero) condições e liberdade para explorar, aprender, crescer no seio de uma comunidade global que, quando funciona, é do melhor que alguma vez vi em termos de atividade humana. Mas encara o doutoramento com o prazo que, de facto, tem. Quatro anos.
Espero sinceramente que a tua orientadora te apoie como deve ser e que, se precisares de mais tempo, te arranje outro financiamento, desconfia do “voluntariado” pós-bolsa, não é bonito de se ver, por mais justificações que haja (falta uma experiência, um gráfico; mas faltará sempre). Se for o caso, denuncia, só assim é possível começar a abordar estas questões, que gente sem escrúpulos (bem intencionada ou menos) há em todo o lado. Serão quatro anos intensos. Mas tira algum tempo para pensar no que queres fazer a seguir.
Se for continuar na investigação científica há um caminho (duro, exigente) a seguir, e tens de estar preparada para ele, sem ilusões. A entrada (o doutoramento) não é difícil, a partir daí complica. No entanto, esse, que era o chamado “percurso canónico” naquilo que tenho de referir como “o meu tempo”, é tudo menos isso agora. Há muitas outras oportunidades excelentes, procura. Sei muito bem que a tua orientadora pode não concordar (tira-te tempo de laboratório...), mas estás a viver a tua vida, não a dela, quando era pequenina. Deve ser uma (boa) referência, mas nem ela és tu, nem tu ela.
Porque é que vais receber uma bolsa, e não um contrato de trabalho? Excelente pergunta! A resposta oficial é que estás a ser treinada, logo não se justifica. Uma resposta curiosa, por dois motivos. Primeiro porque também estás a treinar a tua orientadora e, sobretudo, vais produzir trabalho científico de alto nível. Diria mesmo: profissional. Sem ti pouco funciona, e todos o sabem. Depois porque a comunidade europeia discorda, e nas suas redes “de treino” para doutorandos (parte das Marie Sklodovska Curie Actions – MSCA) é obrigatório celebrar contratos de trabalho.
Resultado: tenho no meu grupo dois alunos a trabalhar num mesmo projeto global, inscritos no mesmo programa doutoral. Uma (MSCA) tem contrato de três anos, 14 meses de salário por ano, direito a compensação indemnizatória quando este acabar, e ainda acesso posterior ao subsídio de desemprego; o outro (FCT) não só ganha globalmente menos (embora tenha quatro anos de bolsa), como pouco mais pode reivindicar, para além da bolsa em si. Isto faz sentido? É uma pergunta retórica. Então por que motivo não se muda? Não sei, só adivinho.
Não só é administrativamente mais linear gerir bolsas (acredita que sei do que falo), como os encargos com contratos são superiores (de três-quatro bolsas farias dois contratos com a mesma verba, mais ou menos). Com as atuais regras da FCT e as taxas de sucesso que existem neste concurso é possível distribuir pessoas como tu por instituições em todos os cantos do país, ir mantendo alguma atividade. Na verdade, candidatos com currículo pessoal razoável e uma equipa de orientação credível, “arriscam-se” a ter bolsa, mesmo com projetos pouco convincentes, para não dizer outra coisa. Se reduzires o número de contemplados, aumentas a assimetria, é inevitável. Que dizes? Era só aumentar a dotação do concurso? Isso são outras conversas, e é mesmo o último conselho que te dou: enquanto cidadã ativa e participativa está atenta a estas discussões em torno do que é, e deve ser, a ciência em Portugal, mas não te percas nelas nesta fase. O teu foco tem de ser outro.
Eu estarei por aqui, se precisares de falar, discutir, desabafar, reclamar, rir, chorar, beber um copo. Sobretudo, estou mesmo muito curioso para ver o que vais fazer, que coisas fascinantes vais descobrir. Mas também que tremendas chatices e dificuldades inesperadas vais encontrar, e como as vais superar (porque vais, acredita). Boa sorte! Precisamos sempre, também em ciência.
Vai dando notícias.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico