Programa Cautelar: cautela com a cautela da Cautela

O Programa Cautelar é um acto de elaboração e de expressão de cidadania. É um animar das almas que descontamina a corrupção e ódio destilados em toda a espécie de meios, electrónicos ou não, enquanto prepara um chão do qual progressivamente nos vamos orgulhando.

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Ricardo Lopes

Comecei a assistir ao Programa Cautelar, de Filomena Cautela, com seis episódios já transmitidos na RTP. E não foi a partir da televisão, mas sim da opção RTP Play (infelizmente, são audiências que não serão consideradas pelos audímetros, peço desculpa, Mena). Não consegui ainda completar a visualização das dezenas de minutos produzidos até ao presente, porém tal não me impede de deixar um agradecimento à apresentadora, às equipas técnica e de especialistas e à RTP pelo serviço público prestado.

Aliás, quero realçar que qualificar esta iniciativa enquanto “serviço público” é simplesmente um pleonasmo. Em primeiro lugar, porque ela surge contextualizada numa rádio e numa televisão que, ao serem públicas, surgem pensadas para abarcar as mais diversas vivências e representações do povo, o qual somos todas e todos nós. Este é, por isso mesmo, um canal de informação e de entretenimento comunitário, quanto mais não seja que a segunda razão da tautologia inicial se prende com o teor dos temas abordados no Programa Cautelar. São assuntos de dimensão social, cultural, política e económica, que atravessam o físico e o digital e conseguem valorizar o testemunho tanto das figuras mais altas do Estado (o lugar da palavra no final do primeiro episódio, por exemplo, foi do Presidente da República) como o de cientistas, artistas ou participantes em espectáculos de todos os estilos e gostos.

Isto significa, destarte, que não estamos perante um programa com intenções de apenas informar a população com dados relevantes como também face a um projecto que arrisca ao juntar a actividade científica às próprias realidades matizadas, ecológicas e complexas que configuram os modos de vida portugueses e os de todo o mundo.

Mas Filomena Cautela não se aventura somente com o abalo das opiniões ou a introdução dos factos que certamente serão incómodos para aquelas/es em que a mentira é sinónimo de uma afirmação ou de uma homologação. Ela arrisca também o riso e o sorriso, os momentos das graças inesperadas e daquelas que, menos imprevisíveis, não deixam por nada a sua comicidade. Consegue Filomena estar a falar de fake news, desemprego ou racismo e não perder a consciência de que as informações mais sérias ou aborrecidas precisam de um toque, ora picante, ora caricato, ora mesmo erótico, para se manifestarem certeiras naquilo que se intenciona atingir. E é esta emoção, este saber de qual o sentido do que se faz, que dignam o esforço prévio construído, o trabalho empreendido e, finalmente, os resultados obtidos (só tenho identificado elogios a estes períodos de sábado à noite!).

O Programa Cautelar é um acto de elaboração e de expressão de cidadania. É um animar das almas que descontamina a corrupção e ódio destilados em toda a espécie de meios, electrónicos ou não, enquanto prepara um chão do qual progressivamente nos vamos orgulhando. Em simultâneo, trata-se de uma valorização da cultura (nacional), porque a produz, a elogia e a ela declara o seu agradecimento. Por tudo isto, acaba por chamar à TV vários grupos da população, nomeadamente as/os jovens, que por múltiplas razões, desde as de cerne, como o desinteresse pelo que na televisão passa, às de método, onde se encontra a possibilidade de aceder a outros conteúdos a partir da Internet, têm patenteado o seu afastamento aos media tradicionais.

Estou agora a progredir no visionamento dos demais episódios que confio serem de uma qualidade comprovada. Enquanto sociólogo e mestrando em Ciências da Educação, desejaria continuar a ver, através de novas temporadas, a existência deste programa por muito tempo (quando não se pode pensar no eterno); e que Filomena Cautela, ao debater tópicos tão essenciais como os das desigualdades económicas ou étnicas, pudesse igualmente introduzir as questões da homofobia e da sexualidade, do urbanismo e das territorialidades, da educação e das políticas educativas ou da saúde mental, entre tantas outras que consubstancializam, no fundo, as nossas sociedades e as relações estabelecidas nas mesmas.

É necessário ter cautela com a cautela da Cautela – por outras palavras, e justificando o título de texto, ter cuidado e respeito pelo vasto poder do conhecimento que Filomena e o Programa Cautelar nos estão a oferecer.

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