Castração química: não à punição, sim à educação
Sou mulher, feminista, fui vítima de abusos sexuais e de maneira alguma me sinto mais segura e/ou protegida com estes apelos a uma violência desumana, à tortura, à dor. Pelo contrário. Esta urgência de vingança e a ideia de uma defesa quase primitiva das mulheres, quase como uma extensão patriarcal da defesa de propriedade, é desconcertante.
Seria de esperar que, com maior acesso a informação e conhecimento, certos discursos se tornassem cada vez mais raros e fossem eventualmente extintos. Claro que, no entanto, fazer a distinção entre o que é informação credível e fidedigna e o que é informação falsa, não confiável e tendenciosa, se torna mais difícil e exige uma análise profunda que muitas vezes não fazemos.
Vivemos dias negros, é cada vez mais fácil cair em populismos baratos e falácias que levam a nenhures. Um dos discursos mais populistas, falsos e que demonstram claramente a facilidade de nos deixarmos levar por conversas que transpiram ódio e “complexo de Deus” é precisamente o da punição de criminosos, nomeadamente de criminosos sexuais. Uso o termo complexo de Deus porque é precisamente isso que fingimos ser: um Deus que controla quem vive e quem morre, quem é punido ou salvo e a severidade da punição.
Falar sobre agressões sexuais é sempre difícil, deixa as pessoas desconfortáveis; até porque sabem que, sendo sérios, teriam de chamar à atenção toda a gente que conhecem e manda piropos na rua, que objectifica mulheres em conversas “de café”, que faz as conhecidas piadas de violação. Todos sabemos que acontece e conhecemos a frequência. Acontece a tanta gente, a pessoas tão perto de nós e é feito tantas vezes por pessoas que conhecemos, do nosso círculo familiar ou de amigos. E nós… fechamos os olhos. Não queremos ouvir, não queremos responsabilizá-los, fingimos que só acontece aos outros – até nos acontecer a nós ou aos nossos.
Enquanto vítima de abusos sexuais, que começaram na minha infância e perduraram até metade da adolescência, eu própria já acreditei no discurso da importância de uma punição severa a criminosos sexuais. Na possibilidade de, enquanto mero ser humano, ter o poder de decidir se a pessoa que me deu tantos traumas merece ou não uma vida digna ou um castigo mais áspero ou mais suave. Não julgo nenhuma vítima de algum crime sexual que deseje a morte de quem lhe proporcionou tamanho trauma. Afinal, é a nossa vida que é estragada, o sofrimento fica, a angústia não desaparece.
Viver com o impacto que um abuso desses nos causa é doloroso e a re-vitimização feita ao longo da vida só piora o que já dói o suficiente. Aliás, o conceito de vitimização secundária refere-se precisamente a isso: a vítima revive inúmeras vezes o trauma por que passou, seja através de exposição ao agressor, seja por questionários repetidos sobre os momentos do abuso ou por ouvir comentários menos apropriados à situação. Ou seja, mais do que o trauma em si, a forma como aqueles que deviam proteger a vítima – todos os que a rodeiam – lidam com ela.
A responsabilidade pelo que a pessoa, que já está num sofrimento inimaginável, sente aquando da exposição da sua situação está em todos os que não a protegem de uma dor que pode ser, maioritariamente, evitada. E claro que quando falamos em agressões sexuais devemos ter em consideração a maneira como falamos das vítimas. Os típicos discursos de “Ela é irmã de alguém!” ou “Mas e se fosse com a tua mãe?” são extremamente prejudiciais à conversa, já que acaba por reduzir a mulher a um grau de parentesco. Não merecemos respeito, empatia (ou, pasmemo-nos, viver sem ser violadas ou violentadas) porque somos irmãs, filhas ou mulheres de alguém. Merecemos respeito, empatia e uma existência livre de invasões ao nosso corpo porque somos seres humanos, somos dignas e temos valor individual.
A reacção que refiro acima é extremamente comum. Não entendemos como é que criminosos sexuais perpetuam os comportamentos que têm. Não entendemos o que é que leva um ser humano a magoar outro a esse nível, a magoar alguém que não se consegue defender, que paralisa aquando da agressão. Repare-se, antes de mais, que falo no sexo masculino, uma vez que é claramente o maior perpetuador de violência sexual. Segundo a APAV, cerca de 94% dos agressores sexuais entre 2013 e 2018 eram homens. Isto mostra que este tipo de violência é claramente um problema de género, ao contrário do que os defensores do #NotAllMen dizem.
Contudo, quando há denúncias de violações ou abusos sexuais, apesar de haver uma parte do público que, influenciada pela cultura da violação, perpetua a culpabilização da vítima e o ignorar do crime cometido, ouvimos de uma outra parte clamores por sangue. Ouvimos que quem comete estes crimes deve ter a genitália cortada, deve ser quimicamente castrado, deve ser condenado à morte. É comum, mas não devia ser.
Sou mulher, feminista, fui vítima de abusos sexuais e de maneira alguma me sinto mais segura e/ou protegida com estes apelos a uma violência desumana, à tortura, à dor. Pelo contrário. Esta urgência de vingança e a ideia de uma defesa quase primitiva das mulheres, quase como uma extensão patriarcal da defesa de propriedade, é desconcertante e deixa desnorteada qualquer pessoa cujos valores assentem na defesa dos direitos humanos.
Mesmo dentro do movimento feminista, inúmeras pessoas caem na mensagem punitivista (extremamente sensacionalista), como se a mulher vítima de violência sexual fosse mais protegida através da punição severa e desumana do agressor e da violação dos seus direitos humanos (porque nunca é demais salientar que todos os seres humanos têm direitos invioláveis) do que através do investimento numa educação claramente anti-misógina, feminista, sexualmente consciente, que desconstrua os mitos da pornografia – até porque sabemos hoje que a pornografia é o primeiro contacto com algum tipo de educação sexual de muitos jovens e que prima pela exploração da mulher em prol do prazer masculino.
Para além disso, e tendo conhecimento do quão repletos de selectividade, opressão e falta de empatia estão os sistemas de justiça no mundo inteiro, torna-se fácil entender que alinhar o pensamento feminista com o discurso punitivo vai contra a interseccionalidade que deve caracterizar o feminismo. Tendo em conta que os sistemas penais se caracterizam pela defesa do universo burguês, do individualismo, e primam pela opressão e marginalização dos grupos minoritários, sabemos que as pessoas mais atormentadas e violentadas pela punição penal não serão os homens brancos de classe média/alta que se enquadram no padrão cis e heteronormativo, mas sim quem pertence aos grupos oprimidos.
Chega então a ser contraproducente defender um sistema tão desigual para quem tão afincadamente defende os direitos humanos e o seu cumprimento. E, como é óbvio, mostra que o populismo não é uma característica que conhecemos apenas aliada à extrema-direita. Também a esquerda cai, muitas vezes, num discurso populista que privilegia a punição em detrimento da reabilitação dos criminosos, do seu acompanhamento psicológico e da terapia que precisam.
Quando falamos da punição de agressores sexuais, é frequente ouvirmos a castração, química ou física, como primeira solução, pelo que é necessário desconstruir os mitos que a envolvem. Em primeiro lugar, a castração física consiste na remoção dos testículos, que impede qualquer tipo de erecção de forma permanente, enquanto a castração química se trata da injecção de uma substância hormonal no corpo da pessoa, que a impede temporariamente de ter uma erecção e diminuindo a libido do agressor. Esta última é feita, por exemplo, em alguns estados dos Estados Unidos, na Coreia do Sul, na Rússia, na Suécia, na Alemanha, no Reino Unido e em França. Em alguns sítios é permitida enquanto acto médico e de forma voluntária, noutros é aplicada em âmbito penal e obrigatória.
Com os conceitos esclarecidos, é importante que se perceba que, geralmente, a violência sexual não se cinge à procura de prazer físico nem a impulsos sexuais; é muito mais complexo do que isso. São dinâmicas de poder, de domínio do agressor sobre a vítima. Assim, o prazer que o perpetuador retira do abuso é muito mais mental do que propriamente sexual.
Tendo isso em conta, é óbvio que o órgão genital não passa de um acréscimo a um abuso que pode ser feito de diversas formas e não envolver a genitália do abusador. O objectivo deste procedimento é a diminuição da libido para prevenção de ataques sexuais, mas devemos ter em consideração que a violência sexual é mais do que apenas uma questão orgânica e, como já foi referido, não depende necessariamente do órgão genital e de uma erecção – ou seja, não há quaisquer provas de que funciona para a redução da reincidência de perpetuadores desta violência. Não se trava a violência sexual com medidas que não se mostram eficazes e que muito menos protegem os elementos da sociedade que mais sofrem com ela.
Devemos então exigir uma reforma do sistema judicial e do sistema prisional, que se aposte cada vez mais na reabilitação e ajuda a estas pessoas e que se invista na educação, especialmente numa educação sexual consciente e, de preferência, que dê prioridade à empatia e ao respeito.