O Douro quer ser ainda mais Verde

Seis municípios potenciam características naturais para que a zona de transição vinícola seja um local de atracção turística. E têm uma carteira recheada de ofertas.

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Bernardo Conde

Consegue dizer mais de centena e meia de palavras por minuto. Sabe de cor as histórias de quase (ou todas) as pedras da região, monumentos, capelas e recantos, serranias e zonas ribeirinhas. Quem o conhece há muitos anos chama-lhe simplesmente “professor”. Quem não o conhece, até pode ser levado a crer que engoliu uma enciclopédia, ele que fez o curso de Românicas e dedicou grande parte da vida profissional ao ensino dos mais novos no Português, Francês e na Literatura. Mas é a contar histórias que Pereira Cardoso se sente em casa. “Eu sempre fui interessado. Já por natureza estudo. E gosto”, diz este apaixonado por tudo o que diga respeito às tradições, à cultura, gastronomia, paisagem e tudo o mais que se possa imaginar acerca do Douro Verde. Ou seja, as terras inseridas na região duriense que produzem vinho verde. Mas não só. Sob a supervisão da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte, o caminho está a ser feito.

Comecemos pelo meio da jornada de dois dias que levou a Fugas a percorrer parte dos concelhos de Baião, Resende, Cinfães, Amarante e Marco de Canaveses – o tal Douro Verde. Atravesse-se o rio desde as Termas das Caldas de Aregos até ao apeadeiro de Caldas de Aregos. São pouco mais de dez minutos pelo meio das águas do Douro, onde o lento ronronar do motor nos embala rumo aos caminhos percorridos por Jacinto n’A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz. Deixemo-nos deslumbrar pela paisagem daquele verde agreste do Douro de transição e subamos até à Fundação Eça de Queiroz.

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João Bernardino

Para quem não conhece o lugar, basta ler a obra póstuma do escritor nascido na Póvoa de Varzim, na qual consta esta transcrição na página oficial da Fundação: “Vales lindíssimos, carvalheiras e soutos de castanheiros seculares, quedas de água, pomares, flores, tudo há naquele bendito monte. A quinta está situada num alto, num sítio soberbo – que abrange léguas de horizonte, e sempre interessante. […] Logo adiante da casa, o monte desce até ao Douro, logo por trás da casa, o monte sobe até aos cimos onde há uma ermida.”

Uma vez entrado, o visitante mergulha no espírito queirosiano da casa que um dia o escritor encontrou pejada de porcos e de galinhas a percorrer salões e quartos de dormir. Dali até ao Restaurante de Tormes é um pulo de gato. E como não provar a canja feita à moda da criada que recebeu o senhor Eça, mais o arroz de favas com galinha dourada e o leite-creme torrado?

Foi nos jardins contíguos ao local de pasto que Pereira Cardoso contou mais uma de mil histórias, desta vez envolvendo “o neto do Eça de Queiroz, D. Manuel de Castro, que era engenheiro agrónomo e esteve em comissão em Angola. Depois, veio para aqui e a mãe dele, D. Maria, a filha mais velha do Eça, entretanto falecida, é que veio dar um primeiro jeito a esta casa. E depois ele [D. Manuel de Castro] viveu aqui e até foi presidente da Câmara de Baião!”

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O professor Pereira Cardoso tem muitas histórias para contar Mário Barros

Termas, EN222 e zilhões de degraus

Quase ao alcance do braço ficam as Termas das Caldas de Aregos que, de momento, estão em estado de dormência, à espera do final de 2023. Nessa altura, estarão concluídas as obras de recuperação, após um investimento de 5,3 milhões de euros. Mesmo assim, vale a pena visitar este local, cujas primeiras referências conhecidas datam de 1102. Isto por causa das propriedades curativas das suas águas cálidas, “ao fundo do monte Gerôncio”. Em marcha está agora o processo de classificação como “Estância Termal do Douro”, o que lhe dará outro estatuto no universo termal português.

E quando em Resende sê resendense. Deixemos as termas em banho-maria e tome-se de assalto uma caixa de cavacas cozinhadas com lenha de vime. A “culpada” é a Casa Adosinda, onde ainda se utiliza o forno tradicional e uma balança de ferro para a medição das farinhas e dos açúcares, lembrando a D. Graça, que fazia mais de 20 quilómetros a pé para vender as cavacas. Reza a lenda que este doce teria sido feito como bolo de noiva, mas que, dada a ausência de casamento, acabou fatiado.

Para quem se preocupa com as calorias, há bom remédio a uma hora de condução pela EN222 – estrada que tem, segundo diversas publicações nacionais e estrangeiras, algumas das paisagens mais bonitas do mundo. Em Arouca, os Passadiços do Paiva estão à espera para uma bela caminhada. Os quase nove quilómetros de extensão, compostos por zilhões de degraus, devem substituir uma semana de ginásio. Para melhor apreciar a paisagem, e numa perspectiva quase de helicóptero, nada como percorrer a Ponte 516. Assim baptizada porque tem 516 metros de comprimento, de topo a topo, com 127 tabuleiros de metal de quatro metros cada. Se o tempo está bom, dá mesmo vontade de ficar a meio da ponte, a 175 metros de altura, puxar de uma cadeira e ler um livro…

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João Bernardino

“Os passadiços farão pelo Paiva mais do que muitas associações ao longo dos anos. Obriga-nos a conservar melhor o território; é geoconservação, geoeducação, que está a ser feita aqui desde o pré-escolar. Queremos trazer cá pessoas, porque só conhecendo é que se pode preservar”, resume Margarida Belém, presidente da Câmara de Arouca.

Vacas, rosas, mosteiro e vinhos

Voltamos à fala com Pereira Cardoso, enquanto as rodas do carro vão de novo para a estrada, agora para a Tasquinha do Fumo, no Caminho da Poça do Salgueiro, em Campelo (Baião). Perdidos? O GPS resolve tudo. Nesse entretanto, o nosso “professor” vai contando histórias sobre a origem da raça arouquesa, que terá evoluído da Antiga Pérsia, onde teria o nome de Ur, viajando depois para o Antigo Egipto (Auroque) e, mais tarde, para a Europa e o cantinho agora chamado Arouca. A história, reconhece, não é consensual, pois há quem defenda ter origem no cruzamento feito pelos celtas de várias raças da região. Poderá ser romantismo…

“A vaca arouquesa distingue-se das outras pelos cornos. Como disse um dia um ilustre conhecido, ‘parece que a lua lhes pousa nos cornos’. São arredondados nas pontas. Há perto de 60 anos, haveria na região cerca de 60 mil vacas; hoje, serão pouco mais de quatro mil de raça pura”, explica Pereira Cardoso.

Ainda em Baião, ficamos a saber o motivo pelo qual a designação Douro Verde tem razão de ser. De visita às obras de recuperação do Mosteiro de Santo André de Ancede, pela mão de Siza Vieira, um produtor e enólogo local brindou com nada mais, nada menos do que uma dúzia de vinhos verdes da região. Foram brancos e rosés, mais intensos e mais suaves, com travo a frutos e a madeira, num sem-fim de experiências. Na mesa ao lado, repousavam de forma provocadora alguns dos petiscos da região: bola de carne, empadas, fêveras em vinha d’alhos, alheira de caça…

A dois passos, no adro, está a Capela do Senhor do Bom Despacho, datada do século XVIII. A capela barroca, de planta octangular, contém uma deslumbrante história da vida de Cristo e “571 rosas pintadas”, segundo o nosso “professor” Pereira Cardoso. Nos pequenos nichos que dão a volta interior à capela é impossível não reparar num frade com uma faca gigantesca na mão, prestes a circuncidar o pequeno Jesus. Não fosse alguma coisa correr mal, o autor colocou ao frade umas lunetas com umas lentes dignas de um telescópio…

Depois de tantas comedorias, nada melhor do que terminar a viagem com um passeio de bicicleta na Ecopista do Tâmega. A antiga estação de caminhos-de-ferro de Celorico de Basto é o ponto intermédio da ligação entre Amarante e Arco de Baúlhe, num total de 49 quilómetros. Dali, é possível ver grande parte do monte Farinha. Alugue uma bicicleta eléctrica, pense na canseira dos ciclistas no final da etapa mítica da Senhora da Graça e faça-se à estrada. Vai ver que a ecopista é feita de veludo.

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