Começo por esclarecer: apoio a “causa” das bicicletas. Como desporto ou meio de transporte, como actividade recreativa. Agrada-me que Lisboa albergue hoje (e até que enfim!) uns quilómetros de ciclovias, sorrio sempre que vejo um pai ou uma mãe a pedalar com o filho ou a filha atrás. Além do impacto na saúde individual, o uso das bicicletas como meio de transporte tem impacto na saúde de todos. Acredito que o aumento da sua utilização reflecte uma maior abertura da sociedade para as causas ambientais e, cada vez mais, é nesse sentido que devemos (temos de!) caminhar.
Mas se, há uns anos, as acções que visavam aumentar a consciência dos condutores automóveis para a presença de bicicletas nas faixas de rodagem tinham a minha total simpatia, o mesmo não posso dizer hoje. Como em tantas outras situações, o reivindicar de direitos (legítimo, cívico e responsável) fez com que, pela minha experiência, se caísse no erro de não cumprir deveres.
Passo a explicar.
Há uns anos tínhamos na estrada automóveis, veículos pesados, motas e pouco mais. As bicicletas eram escassas e de uso recreativo. Hoje em dia temos de tudo o que tem rodas a circular em toda a parte: trotinetas, bicicletas eléctricas, segways, tuktuks e até monociclos. Só faltam mesmo os miúdos com os ténis com rodinhas. Tudo o que tem rodas partilha o mesmo asfalto e frequentemente as mesmas vias, a diferentes velocidades.
Toda esta miríade seria até divertida não fosse um “pequeno” senão: o quase completo incumprimento do código da estrada. Para o condutor automóvel é como conduzir no meio de um enxame — mas caótico e de comportamento imprevisível. Os ciclistas querem ter o direito de ocupar o centro da faixa de rodagem (está certo e é mais seguro), querem conduzir lado a lado, querem cuidados redobrados na abertura de portas. Em suma, querem ser equiparados a automóveis para serem vistos. Está certo. Mas também cruzam passadeiras montados nas bicicletas, andam pelos passeios e fazem ultrapassagens pela direita. Porque “dá jeito”; ou enfim, porque podem. E com isso deixam de se fazer ver. Nunca vi um ciclista parar num semáforo vermelho. Os condutores de trotinetas raramente usam capacetes, já para não falar da falta de civismo no “abandonamento” em que as estacionam. A ciclovia da Almirante Reis é frequentemente (mal) utilizada por motociclistas que pretendem fugir ao trânsito, já para não falar dos “atletas” que a usam como pista de maratona e que, está claro, não obedecem à sinalização automóvel.
O recente falecimento, trágico, de uma grávida a conduzir uma bicicleta voltou a levantar a questão da segurança na estrada. Voltou-se a discutir o assunto, organizaram-se vigílias. São lembrados casos de ciclistas atropelados em passadeiras com a bicicleta pela mão, noutros casos os acidentes não são (convenientemente?) descritos. Mas em nenhuma circunstância encontrei códigos de conduta para ciclistas nem apelos ao cumprimento do código da estrada.
Todos queremos uma estrada mais segura — para peões e condutores de toda a espécie. Mas quando queremos que nos vejam, temos que fazer por ser vistos. O apelo perde muita da sua pertinência quando não são cumpridos os deveres. E se nenhum ciclista se quer sentir exposto ao risco de um atropelamento por um automóvel, nenhum condutor automóvel quer viver com as consequências do mesmo.
A estrada é, deve ser, de todos. Por igual, sem mais direitos ou deveres, sem discriminação, sem condescendência. E isso só é possível se todos, por igual, falarmos a mesma língua — que é como quem diz, cumprirmos o mesmo código.