Portugal pode ter mais de 85 mil mortes só por causa do calor em 2100

Estudo publicado esta quinta-feira no The Lancet Planetary Health analisou dados da mortalidade associados à temperatura, frio e calor, em 16 países, olhando para o passado, mas também com projecções para o futuro, apresentando o melhor e no pior dos cenários.

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Em Portugal, entre 1998 e 2012, há um total de 8% de todas as mortes que pode ser associado à temperatura, seja ao frio ou ao calor bruno simoes castanheiro

As mortes associadas a temperaturas altas em Portugal representaram 0,83% de todos óbitos entre 1998 e 2012 – ou seja, mais de 12 mil pessoas. Mas podem aumentar 1,89% a meio deste século (entre 2035 e 2064) e mais 4,83% no fim do século (entre 2070 e 2099). Este é o pior dos cenários para Portugal, o que, traduzido em números absolutos, significará a meio do século mais de 40 mil mortes só atribuíveis ao calor e, no fim do século, mais de 85 mil mortes. No melhor cenário, o calor provocará cerca de 25 mil mortes a meio e no final do século.

Os cálculos sobre a relação entre a temperatura e a mortalidade no passado e no futuro são de uma equipa de investigadores do Instituto de Barcelona para a Saúde Global (ISGlobal), que analisou os dados de 147 regiões urbanas e rurais em 16 países da Europa, olhando para as mortes causadas tanto pelo calor como pelo frio. Porém, tal como a maioria dos trabalhos com projecções a longo prazo sobre o clima, este estudo não prevê os “saltos” assustadores nos termómetros que temos visto nos últimos dias no Canadá, por exemplo.

O inferno na Terra, o Canadá a cozer, uma onda de calor histórica que bate todos os recordes, o clima a fritar o hemisfério norte, milhares de pessoas sem energia, as altas temperaturas a abrir brechas no asfalto, os incêndios sem controlo e capazes de devorar uma vila inteira no Canadá. Estes são apenas alguns dos títulos das notícias dos últimos dias que vêm do outro lado do oceano atingido por uma onda de calor sem precedentes, com os termómetros a passar dos 49 graus Celsius. Enquanto isso, aqui mesmo ao lado, uma equipa de cientistas em Espanha andou a fazer contas à mortalidade associada à temperatura, seja o calor ou o frio, em vários países europeus (incluindo Portugal) com projecções até 2099.

O estudo sublinha que hoje, apesar de tudo, é o frio que está associado a um maior número de mortes e não o calor – ou melhor, ainda não é o calor, dizem os investigadores, que concluem neste trabalho que a viragem que vai destronar o frio está para breve. “O aumento da fracção atribuível ao calor começará a exceder a redução da fracção atribuível ao frio na segunda metade do século XXI. Esta constatação realça a importância de executar políticas de mitigação. Estas medidas seriam especialmente benéficas no Mediterrâneo, onde a elevada vulnerabilidade ao calor levará a um desequilíbrio entre a diminuição do frio e o aumento da mortalidade atribuível ao calor”, lê-se no artigo.

Marcos Quijal, investigador do Instituto de Barcelona para a Saúde Global (ISGlobal) e um dos principais autores do trabalho, realça que Portugal é um dos países em risco. Mais precisamente, é o 5.º país com o maior aumento previsto da mortalidade atribuível às temperaturas (embora a um nível inferior ao da Itália ou Espanha, por exemplo) até ao final do século (2070-2099) e no pior dos cenários.

Ainda de acordo com o mais pessimista dos três cenários de emissões com efeito de estufa projectados, no período 2070-2099 Portugal pode estar a enfrentar um aumento da temperatura de 3,78 graus Celsius e um aumento de 1,59% das mortes atribuíveis às temperaturas (frio e calor). O estudo olhou para cinco regiões no nosso mapa: Norte, Algarve, centro, Lisboa e Alentejo.

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Calor ultrapassa o frio

Os cientistas apresentam vários cenários de mudanças climáticas, sublinha o investigador da equipa do ISGlobal, um centro que é apoiado pela Fundação la Caixa. Num caso, projecta-se um aumento de 1,67 graus Celsius, noutro um aumento de 2,89 graus e, por fim, um aumento de 4,54 graus. “No cenário da mudança mais favorável, a mortalidade mantém-se relativamente estável até ao fim do século. Pelo contrário, no cenário mais pessimista, o aumento da mortalidade iria acontecer já a meio do século”, constata Marcos Quijal em declarações ao PÚBLICO.

Especificamente sobre Portugal, no estudo refere-se que os dados entre 1998 e 2012 mostram que um total de 8% de todas as mortes pode ser associado à temperatura, frio ou calor. O frio apresenta-se, no entanto, com o maior peso desta percentagem, somando 7% da “culpa” e o calor apenas 0,83%. Mas, quando espreitamos para o que pode vir por aí há várias mudanças. A percentagem das mortes provocada pelo frio vai caindo ao longo do tempo e aquela que é causada pelo calor vai subindo.

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Hugo Delgado/ Lusa

Para o período entre 2035 e 2064, com um aumento de temperatura que pode ir de 1,5 a 2,01 graus, os cientistas apresentam uma variação dos óbitos causados pelo frio em Portugal que cai 0,34% no melhor dos cenários e 0,13% no pior. Sobre a mortalidade associada ao calor a percentagem sobe 0,86% no melhor dos cenários, 1,89% no pior.

No fim do século (entre 2070-2099), com uma subida da temperatura entre 1,20 e 3,78 graus projectada para Portugal, o aumento da quota do calor é de 0,79% na melhor das hipóteses e de 4,83% na pior. Já o frio causará uma redução de mortes de 1,37% no cenário que contempla o menor aumento de temperatura e de menos 2,73%, se as temperaturas subirem até aos 3,78 graus.

“Todos os modelos mostram um aumento progressivo das temperaturas e, consequentemente, uma diminuição da mortalidade atribuível ao frio e um aumento das mortes atribuíveis ao calor”, resume Èrica Martínez, investigadora do ISGlobal e co-autora principal do estudo no comunicado. E acrescenta: “A diferença entre os cenários reside no ritmo a que as mortes relacionadas com o calor aumentam. Os dados sugerem que o número total de mortes atribuíveis à temperatura irá estabilizar e mesmo diminuir nos próximos anos, mas que a isto se seguirá um aumento muito acentuado da mortalidade, que poderá ocorrer algures entre meados e o final do século, dependendo das emissões de gases com efeito de estufa.”

Este trabalho analisa apenas um dos múltiplos efeitos das alterações climáticas na saúde: a mortalidade associada às temperaturas. “Existem outros efeitos directos, tais como eventos climáticos extremos, e outros efeitos indirectos, tais como poluição atmosférica, incêndios florestais ou transmissão de doenças, que mostram que precisamos de agir imediatamente sobre as alterações climáticas”, reclama Marcos Quijal. De qualquer forma, insiste: “Só no cenário com reduções significativas nas emissões de gases com efeito de estufa é que a mortalidade permaneceria estável.”

Marcos Quijal admite que uma das limitações do estudo apresentado agora é o facto de não incluir nas suas contas o impacto da nossa capacidade de adaptação às alterações climáticas e que poderá reduzir a nossa vulnerabilidade ao aumento das temperaturas. “Esse é o próximo passo da nossa investigação”, anuncia. Por outro lado, o cientista destaca que uma das mais-valias deste trabalho está no facto de ser “o primeiro estudo neste campo de investigação que se baseia em dados e modelos epidemiológicos de toda a população, em vez de se restringir às populações urbanas”. Nos países analisados – Áustria, Bélgica, Croácia, República Checa, Dinamarca, França, Alemanha, Itália, Luxemburgo, Holanda, Polónia, Portugal, Eslovénia, Espanha, Suíça, e Reino Unido – foram consideradas 147 zonas urbanas e rurais.

No final de Maio, um estudo publicado na Nature Climate Change e que englobou dados de 732​ locais de 43 países concluía que, entre 1991 e 2018, em média, 37% das mortes humanas estavam relacionadas com o calor e podem ser atribuídas a alterações climáticas de origem humana. Em Portugal, 27,7% de mortes ligadas ao calor podem ser atribuídas a alterações climáticas antropogénicas entre 1991 e 2016, o que corresponde a 172 mortes por ano em cinco localizações (Beja, Coimbra, Castelo Branco, Lisboa e Porto), acrescentava o mesmo trabalho.

O investigador Marcos Quijal confirma que “nas últimas décadas o aquecimento tem ocorrido a um ritmo mais rápido na Europa do que em qualquer outro continente” e realça que “a incidência deste fenómeno é desigual, com os países mediterrânicos a serem mais vulneráveis do que os restantes”. A conclusão do estudo vai dar ao aviso de sempre. O mundo ainda não deu nenhuma razão para mudar o tom e conteúdo do alerta: é preciso pôr no terreno políticas de mitigação para travar as alterações climáticas e o aquecimento global e é preciso que seja já.

“As pessoas estão cansadas de más notícias”

Não é preciso ter uma boa memória para ter noção do perigo que bate à nossa porta. Os fenómenos que atingiram o hemisfério norte nos últimos dias são suficientes para qualquer pessoa ouvir o estrondo que força as fechaduras, cada vez mais frágeis. E, como se uma onda de calor terrível e sufocante não fosse o suficiente, ela arrasta outros danos, como incêndios incontroláveis. Ao mesmo tempo, ouvimos os alertas sobre a tempestade tropical Elsa, que se aproxima, e temos bem presente os relatos e muitos ecos de um Árctico a derreter a um ritmo alucinante. Parecendo que não, está tudo ligado.

“As pessoas estão cansadas de más notícias”, reconhece Filipe Duarte do Santos, geofísico especializado em alterações climáticas e professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Num comentário ao PÚBLICO, o investigador refere que a actual situação que se vive no Canadá representa uma das situações inesperadas que os especialistas esperam. “Temos de ir às razões, às causas. O que se passa com o aumento do efeito de estufa é que o sistema climático, que inclui a atmosfera, os oceanos, a terra firme, a criosfera, as partes geladas, tem actualmente muito mais energia térmica”, explica.

É como se estivéssemos a olhar para a atmosfera como um organismo vivo, uma pessoa. Com a energia que está a receber, essa “pessoa” pode ficar febril. “A atmosfera tem de dissipar essa energia toda de diferentes formas. Transforma essa energia térmica em energia cinética e, portanto, tem tempestades muito mais violentas, processos de evaporação mais violentos; a precipitação é também muito mais violenta, depois as ondas de calor são mais fortes, mas o frio também pode aumentar, porque se está muito calor de um lado, depois fica frio do outro… O que acontece é que o Árctico expurga, deita fora, aquele capacete de ar frio que tinha no passado e agora, como vai aquecendo e expele aquelas massas de ar frio para cima da Europa ou dos Estados Unidos, faz contrastes brutais”, diz Filipe Duarte dos Santos. E esta é a resposta simples para os que ainda se agarram ao registo de temperaturas muito baixas e nevões que quebram recordes para negar o aquecimento global apregoado pelos cientistas.

A solução, todos sabem, passa por uma transição para uma energia limpa e renovável. Na segunda-feira, o Conselho Europeu adoptou uma lei sobre alterações climáticas que obriga legalmente os 27 membros da União Europeia a reduzir colectivamente as emissões com efeito de estufa em 55% até 2030 – em relação aos níveis de 1990 – e a estabelecer uma economia com emissões zero líquidas até 2050. Mas falta ainda tanta coisa. É preciso que os países ricos cheguem a acordo sobre um calendário para acabar com a utilização de carvão para produzir energia eléctrica, por exemplo.

A corda da guitarra

As projecções da ONU, entretanto, sugerem que já poderá ser demasiado tarde para evitar o aumento de 1,5 graus Celsius da temperatura global que tem sido o objectivo-chave identificado nos acordos climáticos de Paris de 2015. Nos últimos dias, com os termómetros a chegar perigosamente quase a 50 graus Celsius no Canadá, muitos cientistas aproveitaram para voltar a exigir uma mudança urgente. Dizem agora que já não estão preocupados mas assustados. As ondas de calor não são novidade. Todavia, saltos desta magnitude na fasquia dos registos mais antigos nas temperaturas são avisos sérios. Ter novos recordes de temperaturas acontece de tempos a tempos. Mas é preciso notar que o recorde anterior do Canadá era de 45 graus e que normalmente estes limites são ultrapassados por meio grau ou um grau. Desta vez, a fasquia subiu mais de quatro graus e durante vários dias seguidos.

A América do Norte viveu o mês de Junho mais quente desde que existem registos, marcado por recordes excepcionais no Canadá, anunciou esta quarta-feira o Serviço Europeu de Mudanças Climáticas Copérnico (C3S). O passado Junho foi também o segundo mais quente na Europa e um dos meses que à escala mundial registou temperaturas mais elevadas, segundo um estudo do Copernicus. A onda de calor atingiu o pico a nordeste do continente europeu e alastrou-se para o Irão, Paquistão e regiões como o Norte de África.

Os países nórdicos também registaram temperaturas quase recordes durante o último fim-de-semana, incluindo máximas de 34 graus Celsius em alguns locais e há quem acredite que este fenómeno está ligado ao que se passa no Canadá. “É como puxar uma corda da mesma guitarra. A perturbação propagou-se”, diz Michael Reeder, professor de Meteorologia na Universidade de Monash, na Austrália, citado pelo Guardian.

É essencial que ninguém se esqueça da velha lição dos cientistas que há anos nos dizem que estes fenómenos extremos serão cada vez mais frequentes e intensos – por mais ocupados que estejamos com uma pandemia global que vai fazendo fintas aos esforços de um mundo inteiro para a derrotar. O SARS-CoV-2 pôs o mundo de cabeça para o ar de um momento para o outro. Já os efeitos do clima têm a “desvantagem” de ser uma tragédia difusa e intermitente. “Estou plenamente convencido de que as crianças que nascem agora vão ter um mundo muito mais complicado”, desabafa Filipe Duarte dos Santos. Mais complicado e, sem dúvida, mais quente.

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