“Rumores” e luzes apagadas: como os militares afegãos souberam da retirada dos EUA de Bagram

Americanos deixaram para trás 3,5 milhões de objectos discriminados, incluindo dezenas de milhares de garrafas de água, mas também viaturas civis sem as chaves. Base foi pilhada logo depois.

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Um soldado afegão inspecciona objectos deixados pelos militares dos EUA HEDAYATULLAH AMID/EPA
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Na base ficaram centenas de viaturas civis, muitas sem as chaves, e centenas de blindados HEDAYATULLAH AMID/EPA
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Na segunda-feira, os soldados afegãos continuavam a recolher pilhas de lixo deixado pelos saqueadores HEDAYATULLAH AMID/EPA
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Em Bagram estão agora uns 3000 militares afegãos HEDAYATULLAH AMID/EPA
Bagram Airfield
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Os EUA deixaram para trás viaturas militares e civis (neste caso, muitas ficaram sem as respectivas chaves) HEDAYATULLAH AMID/EPA

Já se sabia que um dos momentos mais importantes da retirada dos Estados Unidos do Afeganistão, a saída dos últimos militares da base militar de Bagram, tinha acontecido discretamente durante a madrugada. Mas segundo o novo comandante da base aérea que foi o centro de comando da guerra durante quase 20 anos, as forças dos EUA desligaram o fornecimento de luz e saíram sem qualquer aviso, deixando os soldados afegãos perplexos e zangados.

O general Mir Asadullah Kohistani diz que demorou duas horas a perceber que os norte-americanos já não estavam em Bagram, a 60 quilómetros de Cabul. “Ouvimos rumores de que os americanos tinham saído de Bagram… e finalmente, pelas 7h, percebemos que estava confirmado que tinham retirado”, disse à Associated Press o novo comandante, durante uma visita de jornalistas à base. “Não conhecíamos o calendário da partida. Eles não nos disseram quando saíram”, acrescentou o general afegão.

O primeiro sinal da partida silenciosa foi a escuridão em que a base mergulhou, com a electricidade a ir abaixo, contou à AP Abdul Raouf, um soldado que já esteve mobilizado nas províncias de Kandahar e de Helmand, tradicionais bastiões dos taliban, que combatem as forças do Governo afegão. Raouf diz que a escuridão funcionou como aviso – pouco depois, grupos de saqueadores entravam, derrubando a primeira barreira, para pilhar os edifícios e carregar camiões com tudo o que não estivesse pregado ao chão, descreve.

“Numa noite perderam toda a boa vontade de 20 anos, ao partirem assim, à noite, sem dizerem nada aos soldados afegãos que estavam a patrulhar a zona”, queixou-se outro soldado, que também falou com a AP.

A retirada foi noticiada horas depois. Num comunicado, Washington afirmou genericamente que as forças norte-americanas tinham coordenado a sua partida das várias bases militares com os líderes afegãos. A saída dos últimos militares de Bagram, 2500 a 3000 (chegaram a ser dezenas de milhares, entre tropas dos EUA e de vários países que participaram na missão da NATO), assinala o fim da mais longa guerra em que os EUA se envolveram.

No terreno, até ao fim de Agosto, ficaram umas poucas centenas de soldados em dever de guarda. O porta-voz do Pentágono, John Kirby, insistiu numa conversa com jornalistas que continuam a poder proteger as forças afegãs. “Essa autoridade ainda existe”, afirmou.

Mas na prática a guerra trava-se agora entre afegãos e os taliban, que em troca da retirada das forças estrangeiras se comprometeram a não permitir que grupos terroristas operem nas zonas sob seu controlo (como a Al-Qaeda) e a combater quaisquer forças que pretendam atacar alvos norte-americanos, têm somado vitórias. Nos últimos dias, os “estudantes de teologia” conquistaram vários distritos, principalmente no Norte do país, nalguns casos depois da deserção de centenas de soldados afegãos.

Plano de paz dos taliban

Apesar das vitórias, os taliban regressaram às negociações com os enviados do Governo em Doha, a semana passada. O grupo que os EUA e os seus aliados expulsaram do poder em Cabul, depois dos atentados do 11 de Setembro, diz agora que vai apresentar uma proposta de paz escrita ao Governo afegão até ao próximo mês. “Embora tenhamos a vantagem no campo de batalha, levamos as negociações e o diálogo muito a sério”, assegurou o porta-voz Zabihullah Mujahid à agência Reuters.

Entretanto, o general Kohistani diz que as suas 3000 tropas farão os possíveis por defender Bagram. “Se nos compararmos com os americanos, a diferença é muito grande. Mas de acordo com as nossas capacidades… estamos a tentar fazer o melhor e, tanto quanto possível, proteger e servir todas as pessoas”, afirmou.

Um pedaço do World Trade Center

Bagram, que também integra uma prisão com 5000 detidos – um dos buracos negros da “guerra ao terrorismo”, foi palco de inúmeros abusos e maus-tratos, sendo conhecida como a “Guantánamo afegão –, foi crescendo desde 2001, até se tornar uma pequena cidade com duas pistas de aterragem, três hangares, um hospital com 50 camas, cinemas, lojas e ginásios. Em Dezembro de 2001, bombeiros de Nova Iorque e soldados enterraram na base um pedaço das torres do World Trade Center, que ali ficou.

Para trás, os EUA deixaram ainda 3,5 milhões de objectos, todos discriminados, incluindo dezenas de milhares de garrafas de água, bebidas energéticas e refeições instantâneas. Na base ficaram centenas de viaturas civis, muitas sem as chaves, e centenas de blindados. Segundo Kohistani, os soldados deixaram também armas de pequeno porte e as respectivas munições, mas levaram consigo todo o armamento pesado.

Na segunda-feira, os soldados afegãos continuavam a recolher pilhas de lixo deixado pelos saqueadores, incluindo garrafas de água vazias e latas.

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