Cientistas decifram passos de uma célula quando se divide em duas iguais
Equipa de investigadores vigiou células estaminais neurais e identificou momentos decisivos do início do complexo processo de divisão celular que resulta numa cópia da informação genética.
Uma equipa de investigadores do Instituto de Investigação Inovação em Saúde (I3S) da Universidade do Porto e do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC) conseguiu decifrar mais alguns dos passos decisivos do processo de replicação de uma célula. Olhando para células estaminais neurais, os cientistas perceberam que há um momento em que a informação genética é compactada e em que a célula emite uma espécie de sinal que inicia este complexo processo de divisão celular. O resultado desta operação de espionagem ao momento em que uma célula se divide em duas iguais está num artigo publicado esta quinta-feira na revista científica Genes and Development.
Sabemos que uma célula consegue criar duas células exactamente iguais e que há um momento em que a informação genética ali guardada é compactada e copiada. Também sabemos que todas as nossas células, desde um neurónio a uma célula da nossa pele têm exactamente a mesma informação genética única de uma pessoa, o mesmo ADN. Porém, para que um neurónio seja um neurónio é preciso que no meio de toda aquela informação ligue ou desligue os genes certos. É isso apenas, de uma forma muito simples, que distingue uma célula de outra com diferentes funções.
Porém, esta cópia de informação e forma como se processa, passo a passo, ainda é um processo repleto de incógnitas que os cientistas tentam esclarecer. O comunicado de imprensa do I3S sobre o trabalho coordenado pelo investigador Diogo Castro recorre a uma metáfora de uma biblioteca para explicar uma situação que envolve conceitos e palavras mais complicadas como mitose, factores de transcrição e seus activadores e contexto electrostático. Vamos, por isso, ficar presos à imagem mais fácil da biblioteca.
Uma nuvem na biblioteca
Antes, porém, temos de referir que, em conversa como o PÚBLICO, Diogo Castro introduz mais uma simples tradução de um momento da divisão celular: em que a presença e concentração de certos activadores que estão perto dos cromossomas interagem com o material genético na célula. O investigador fala então na formação de uma “nuvem” que surge muito cedo com uma acção decisiva neste processo e que, metendo o carro à frente dos bois, representa na verdade a grande novidade deste estudo.
Então: temos uma célula que pode ser comparada a uma biblioteca (com toda a informação genética ali guardada de uma determinada forma) que precisa de ser empacotada para depois ser transmitida de forma muito precisa a outra célula igual. E podemos dizer que a tal nuvem a que o cientista se refere surge ainda durante esta fase de empacotamento, de fazer as malas. Ou seja, na condensação do material genético que se encontra nos cromossomas e quando ainda não existe sequer a outra célula. O início do processo de arrumação da biblioteca levanta esta nuvem que é um dos primeiros e decisivos sinais de uma divisão celular que começou a acontecer. E é, sublinhamos de novo, precisamente a presença e acção desta nuvem que os investigadores descobriram agora e que descrevem no artigo.
“O modelo que apresentam clarifica um processo biológico até hoje algo enigmático. Este trabalho é mais um passo para se perceber como, a partir de uma célula em divisão, se conseguem originar duas células idênticas à célula mãe”, refere o comunicado de imprensa sobre o estudo. Diogo Castro explica ao PÚBLICO que esta nuvem é composta por muitos ingredientes (activadores de transcrição) e que, neste caso, a investigação centrou-se em dois que são já bem conhecidos e estudados nos trabalhos com células estaminais neurais.
Para a operação que permitiu perceber quando e onde estes dois activadores começavam a surgir emitindo um dos primeiros sinais da divisão celular prestes a ocorrer, a equipa contou com a colaboração da investigadora Raquel Oliveira, do IGC, e de investigadores do Reino Unido. Os cientistas vigiaram este processo em células estaminais neurais em cultura com recurso a técnicas de microscopia que garantem uma resolução temporal muito detalhada.
Foi assim que se viu que antes de a célula “decidir” quais os genes que serão ligados e desligados para que se cumpra a sua função, igual à da célula mãe, surge esta nuvem que dá as primeiras instruções que vão servir para fazer a cópia funcional, desencadeando a divisão celular. Desta forma, esclarece-se também a ordem cronológica destes eventos.
O silêncio e os caixotes
Para quem se sente preparado para complicar um pouco esta história, Diogo Castro acrescenta ainda alguns detalhes. Diz-nos, por exemplo, que – quando o processo de arrumação da biblioteca começa numa célula – a tal condensação do material genético (a formação da nuvem) atinge níveis altos que acabam por suspender a actividade da célula. Há, neste momento, uma fase de “silêncio”. Com as malas feitas para transmitir a informação da célula mãe para a sua cópia, a célula desperta.
“É como se as células encaixotassem os livros e encerrassem a biblioteca geral, para poderem dividir-se em duas células iguais, cada uma levando uma cópia integral dessa grande biblioteca”, diz o investigador. E o comunicado acrescenta: “Mas, antes de saírem completamente do processo de divisão, ainda com o ADN empacotado, elas [as células] retomam alguma actividade de transcrição de alguns genes. Essa retoma acontece por fases e é coordenada no tempo, começando por alguns genes específicos”.
O “acordar” das células e o início da actividade dos factores de transcrição que funcionam como interruptores ligando ou desligando alguns genes ainda está cheio de mistérios. Para já, este trabalho oferece um novo dado sobre a divisão celular em células estaminais neurais ainda indiferenciadas, falta identificar outros possíveis sinais, confirmar que o mesmo acontece quando uma célula diferenciada se replica e ainda o que muda neste processo quando a duplicação é assimétrica, ou seja, quando uma célula estaminal se divide em duas mas uma é estaminal (indiferenciada) e outra é, por exemplo, um neurónio (diferenciada).
O que esta equipa agora esclarece é que a formação da nuvem (que resulta da concentração de activadores da transcrição perto dos cromossomas) tem um papel importante e precoce na tarefa de definir os genes que se ligam e desligam. “As características electrostáticas e a capacidade de interacção dos tais activadores de transcrição com o material genético é determinante para a célula decidir quais os genes que começam a ser transcritos, e quando”, adianta ainda Mário Soares, primeiro autor do artigo, citado na nota de imprensa.
E eis que surge a questão de sempre: e porque é que é importante sabermos isto? Compreendermos este processo, responde Mário Soares, “dá-nos não só ferramentas para o poder alterar, com vista a tentar manipular as características das células que resultam dessa divisão, mas também nos permite perceber o que se altera quando uma célula, ao dividir-se, ‘decide’ dar origem a células diferentes, por exemplo neurónios”.
Muitas vezes (quase sempre?) temos de saber o mais básico do básico para percebermos algo mais complexo, tal como aprendemos as letras para conseguir ler uma frase. Da mesma forma, é preciso saber como as palavras se escrevem da forma certa se quisermos detectar e corrigir erros. As descobertas da ciência mais básica e fundamental são sempre, mais cedo ou mais tarde, essenciais para a possibilidade de uma aplicação concreta e útil.