Ciência em estado pós-normal
A definição de políticas públicas e a resposta a desafios societais deve envolver não só cientistas, mas também especialistas de outras áreas, incluindo das ciências sociais, assim como stakeholders de diferentes domínios e setores da sociedade.
Um domínio científico está em estado pós-normal quando a incerteza é muito grande, há valores culturais em jogo, os riscos para a sociedade são elevados e as decisões a tomar urgentes. Com base nesta definição, a ciência do clima é um exemplo óbvio de uma ciência em estado pós-normal, e a pandemia de covid-19 evidenciou de forma marcante a situação de pós-normalidade em muitas outras áreas.
A ciência moderna rege-se por princípios de imparcialidade e universalidade que são a base da sua inegável contribuição para o avanço do conhecimento e o desenvolvimento tecnológico. Apesar de a ciência não conseguir ser inteiramente objetiva, como atividade humana e cultural que é, está na sua matriz esforçar-se por sê-lo. O método científico promove mecanismos intrínsecos de autocorreção, e um facto científico não é entendido como uma verdade absoluta, mas antes como a explicação mais plausível de um determinado fenómeno. Como tal, pode (e deve!) ser substituído por uma explicação alternativa em face de novos dados e novos conhecimentos. Um facto não é científico, ainda que expresso por um cientista profissional, quando o método científico não é seguido, por exemplo quando uma explicação é escolhida apenas porque está de acordo com uma dada escola de pensamento. Apesar destes princípios estarem bem enraizados, a sua aplicação é posta à prova em condições pós-normais.
A pressão social a que a prática científica está sujeita em situações pós-normais afeta o próprio processo científico e os seus resultados. É inevitável a predisposição para investigar tópicos considerados socialmente relevantes e para privilegiar explicações consistentes com a visão social dominante. Na área do clima, a utilidade da ciência – por exemplo para alcançar os objetivos dos acordos internacionais sobre o clima ou pelo contrário para adiar alterações económico-sociais profundas e dispendiosas – torna-se o foco principal, mais do que a solidez da ciência em si que informará essa tomada de decisão. A utilidade da ciência e a sua coerência com as preferências culturais e políticas torna-se mais relevante do que a sua solidez em termos de rigor metodológico. Paradoxalmente, a utilidade da ciência para informar processos de decisão fica então significativamente reduzida, já que deixa de ter o distanciamento, foco e imparcialidade que são precisamente a sua força.
Para manter a inegável utilidade da ciência para a sociedade, nomeadamente na compreensão de fenómenos complexos e mesmo em situações de emergência e de alto risco, como é o caso das alterações climáticas, é importante que a ciência insista na imparcialidade e no rigor metodológico que é a sua força. Mais do que conhecimento específico sobre um ou outro tema científico, é crucial aumentar a compreensão (dos jovens e não só) sobre o próprio método científico, dando mais ênfase ao longo do percurso educativo a temas aparentemente pouco úteis, como filosofia ou história da ciência. O conhecimento sólido dos princípios fundamentais que norteiam a prática científica é obviamente crítico para quem trabalha em ciência, mas não só!
Para quem não lida diretamente com questões científicas, é ainda mais difícil apreender o carácter distintivo do método científico, resultando ora na sobrevalorização do poder da ciência e do que pode efetivamente contribuir para a sociedade, ora na desvalorização e descrédito dos resultados científicos. Esta polarização é exacerbada em situações pós-normais, quando a ciência é vista em termos do modo como supera ou fica aquém das expectativas da sociedade, independentemente da sua validade intrínseca.
Em condições pós-normais, a ciência tende a inclinar-se para a política (ao simplificar conclusões e ignorar incertezas) e a política tende a inclinar-se para a ciência (ao justificar decisões com factos científicos tidos como verdades absolutas). Como “a César o que é de César...”, essa inclinação deve ser corrigida. A ciência deve manter-se no seu núcleo duro de competência, que é inevitavelmente limitado em termos do âmbito da realidade que descreve. E a política deve promover processos de decisão abertos e inclusivos, baseados em ciência, mas tendo em conta as suas incertezas e domínio específico.
Apesar do seu inquestionável sucesso e importância, o conhecimento científico é muito focado em domínios de especialização concretos, e como tal limitado, fornecendo apenas uma parte de todo o conhecimento que é necessário para lidar com problemas complexos como sejam as alterações climáticas. A definição de políticas públicas e a resposta a desafios societais deve por isso envolver não só cientistas, mas também especialistas de outras áreas, incluindo das ciências sociais, assim como stakeholders de diferentes domínios e setores da sociedade, respeitando as limitações e forças de cada um para um processo de decisão mais construtivo e democrático. O mesmo princípio será transponível para outras áreas, incluindo no caso da atual pandemia de covid-19.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico