Ter “medo de morrer todos os dias”: Valérie Bacot, julgada por matar ex-padrasto que foi seu marido e chulo
Mais de 600 mil pessoas já assinaram uma petição a pedir que a mulher que confessa ter assassinado o marido seja libertada. Pelo menos 55 mulheres já foram assassinadas em França pelos seus parceiros em 2021.
“Compreende o que significa ter medo de morrer todos os dias?”, perguntou Valérie Bacot ao procurador, no arranque do julgamento. Bacot, de 40 anos, está a ser julgada na cidade de Chalon-sur-Saône, Leste de França, pelo assassínio do marido, ex-padrasto, que a forçava a prostituir-se e que acusa de a ter começado a violar aos 12 anos. O julgamento, que deve prolongar-se até sexta-feira, desencadeou um debate sobre a violência conjugal em França e as dificuldades da justiça para proteger as suas vítimas.
A francesa, que teve quatro filhos com Daniel Polette, não nega que o matou, em 2016, no que diz ter sido um desesperado acto de autodefesa, acentuado pelo medo de que começasse a abusar da filha de 14 anos, a quem já tinha feito comentários sexualmente sugestivos. A procuradoria diz que foi um assassínio premeditado e quer vê-la condenada a prisão perpétua, mas mais de 600 mil pessoas já assinaram uma petição a pedir que seja libertada.
Muitos defendem que este caso mostra como há tanto por fazer no combate à violência doméstica e sublinham que pelo menos 55 mulheres já foram assassinadas no país pelos seus actuais ou ex-parceiros em 2021.
“Foi a extrema violência sofrida durante 25 anos e o seu medo de a ver perpetuar-se contra a sua própria filha que a conduziram, de forma inexorável, a passar ao acto”, defendem as suas advogadas, Janine Bonaggiunta e Nathalie Tomasini. “Quero sublinhar que as mulheres vítimas de violência não são protegidas. A justiça é muito lenta, pouco reactiva e carece de severidade contra os autores, o que lhes permite continuarem a perpetrar a violência com todo seu poder. Isso é o que pode levar uma mulher desesperada a matar para sobreviver”, disse Bonaggiunta à AFP.
As duas advogadas já defenderam Jacqueline Sauvage, que em França se tornou num símbolo da violência doméstica. Condenada a dez anos de prisão por matar o marido, extremamente abusivo, em 2012, foi perdoada em 2016 pelo então Presidente, François Hollande. Sauvage morreu o ano passado.
“Tout Le Monde Savait”
Os franceses conhecem bem a história de Bacot, que confessou o crime em 2017, quando foi presa, sendo libertada um ano depois para aguardar pelo julgamento em liberdade vigiada. Em Maio, publicou o livro “Tout Le Monde Savait” (“Toda a Gente Sabia”), onde descreve os quase 20 de vida comum com Polette (25 anos mais velho), incluindo 14 de prostituição forçada no banco de trás da carrinha que ele adaptou para o efeito.
No livro, conta como Polette a violou pela primeira vez quando namorava a sua mãe, tinha Bacot 12 anos. Em 1995, foi preso e condenado a quatro anos de prisão por violação de menor de 15 anos, mas foi solto dois anos depois e voltou a viver com a família. “Ele disse à minha mãe que não ia começar de novo. Mas começou”, disse em tribunal.
Bacot diz que a sua história “é fruto de tantas disfunções” e nota o regresso do seu atacante a casa e duas denúncias que os seus filhos afirmam ter feito na polícia, que as autoridades não encontram.
Aos 17 anos, Bacot engravidou de Polette e a mãe expulsou-a de casa. Foi viver com o abusador. “Queria ter o meu bebé. Não tinha ninguém “, afirmou. “Onde é que eu podia ir.”
“Como se sente?”
Os abusos nunca mais pararam de piorar – os estalos passaram a murros, depois começou a sufocá-la, até lhe apontar uma arma à cabeça, ameaçando matá-la. A vida era “um inferno extremo”, contou ao tribunal. Com mais três filhos nascidos da violência, Bacot descreve no livro que vivia como uma prisioneira, proibida de falar com toda a gente e permanentemente com medo. Quando Polette se reformou de conduzir camiões, forçou-a a trabalhar como prostituta, levando-a ao encontro de clientes numa carrinha que decorou com um colchão e umas cortinas, escreve.
Tudo acabou a 13 de Março de 2016 quando Bacot, depois de ser violada por um cliente, pegou na pistola que Polette escondia na carrinha e lhe deu um tiro na nuca. Escondeu o corpo nas proximidades, com a ajuda de dois dos seus filhos, condenados a seis meses de pena suspensa.
“Como se sente?”, perguntou a Bacot a juíza presidente do Tribunal Penal de Saône-et-Loire. “Este processo ainda é o meu combate contra ele”, respondeu. “Ainda não ‘virei’ a página, ainda vivo sob o seu controlo.”