O que é que Lisboa tem? Cinco hipóteses para os números da covid-19
Não há um factor explicativo para Lisboa e Vale do Tejo somar quase 70% dos novos casos de covid-19. Pelo menos cinco concorrem para esse resultado.
Mobilidade metropolitana
Embora não na actual proporção, “seria de esperar que a Área Metropolitana de Lisboa tivesse mais casos – pela concentração de população, pela integração dos territórios, pela forma de mobilidade”, aponta o geógrafo Jorge Malheiros, do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa. “As pessoas são muitas, estão próximas, mexem-se bastante.”
Não são só os movimentos pendulares casa-trabalho ou casa-escola. Há uma maior mobilidade internacional (mais pessoas a entrar no país por trabalho, estudo, família, lazer) e uma mobilidade interna mais complexa. Na transição da Primavera para o Verão, “a mobilidade até costuma ser maior e mais fragmentada”. Os estudantes, exemplifica Malheiros, têm exames. Está bom tempo. “As pessoas sentem mais necessidade de ter contacto social.”
O epidemiologista António Silva Graça já tinha chamado a atenção para a “grande permeabilidade da capital relativamente aos concelhos limítrofes”, sustentando que não bastava decretar medidas para o concelho de Lisboa, que era preciso olhar para a Área Metropolitana. “É evidente que isso agrava”, corrobora o epidemiologista Manuel Carmo Gomes. Esta quinta-feira, o Governo decidiu proibir a entrada e a saída da AML durante todo o fim-de-semana.
Variante Delta
A variante Delta já foi detectada em mais de 75 países. Em Portugal, tem tido transmissão mais evidente na região de Lisboa e Vale do Tejo, de acordo com a monitorização do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge e da Direcção Geral de Saúde (DGS).
António Silva Graça já tinha atribuído alguma responsabilidade a esta variante, com origem na Índia, pela situação de Lisboa. “É uma estirpe que é bastante mais contagiosa do que as outras que têm circulado. Talvez seja a mais contagiosa de todas”, salientava. Agora, diz Manuel Carmo Gomes, os dados já apontam para a hipótese de representar mais de 50% dos novos casos na região, o que estará a contribuir para o acelerado aumento. “A variante Delta está a substituir a britânica.”
Sub-40 ainda por vacinar
É nas faixas etárias abaixo dos 40 anos que se concentra a maior parte dos novos casos. Estas pessoas estão por vacinar a menos que façam parte de algum grupo prioritário: até terça-feira tinham sido vacinadas 5,5% das pessoas entre os 18 e os 24 anos e 18,5% das entre os 25 e os 49. Manuel Carmo Gomes chama a atenção para o ranking das várias faixas etárias com teste positivo: “Primeiro é dos 20 ao 29, depois 30 a 39 e depois 10 a 19. É a malta nova, que está farta de estar em casa, que sai, que faz festas. Esta variante nestes jovens é como fogo na pradaria.”
António Silva Graça também já combinara a falta de vacina com a maior exposição desta população, “porque estuda, porque trabalha, porque socializa”. E tudo isso a uma eventual “menor adesão às medidas de protecção que continuam a ser indispensáveis para controlar a pandemia”.
Jorge Malheiros lembra que a Grande Lisboa concentra maior proporção de jovens, como o Grande Porto ou Braga. “Era interessante fazer trabalhos comparativos sobre comportamentos de risco até para podermos ter medidas dirigidas”, considera. Não para fazer dos jovens bodes expiatórios, porque ainda não estão vacinados, têm de ir para a escola, a universidade ou a o trabalho e estão cansados da pandemia, mas para sensibilizá-los. “Fazer festas é bom, mas, se calhar, agora não pode ser. Pode não ser tão perigoso para ti, mas podes transportar o vírus para casa, ser um risco para os mais velhos.”
Desconfinamento social
Duarte Cordeiro, coordenador regional da resposta à covid-19 em Lisboa e Vale do Tejo disse há dias à RTP que “a generalidade das situações têm ocorrido por contágio familiar”, embora também se registem contágios em festas e outros eventos sociais e mesmo em escolas. “Há aqui um desconfinamento social da parte das pessoas que tem resultado neste aumento significativo”, comentou aquele responsável.
Jorge Malheiros recorda que é nos grandes centros em geral e em Lisboa em particular que há mais centros de decisão e eventos culturais. “Esta componente dos eventos tem também um lado familiar”, sublinha. “As pessoas até se podem proteger, mas quando há comida a probabilidade aumenta logo porque se tira a máscara para comer. E ainda há aulas. Começa a haver mais reuniões presenciais.”
“Não temos nada que meça isso, mas os índices de confinamento estão baixíssimos”, volta Manuel Carmo Gomes. “O último relatório do Instituto Ricardo Jorge diz que estamos a 10% do máximo que já estivemos. Há semanas que estamos, a nível nacional, com muito pouco confinamento.”
Mais testes
Nas últimas três semanas, a região de Lisboa e Vale do Tejo registou quase tantos testes como o resto de Portugal continental. De acordo com a DGS, entre 24 de Maio e 13 de Junho houve 353.558 testes. No mesmo período, nas restantes regiões, 388.760.
Desde Abril, todos os residentes em Lisboa podem fazer testes gratuitos à covid-19 em farmácias. Manuel Carmo Gomes acha que se vai tarde: “Todos os indicadores estão a aumentar há cinco semanas: o R(t), a incidência, a positividade.” Tendo em conta tudo o que já se sabe sobre o coronavírus, considera que “a testagem massiva devia ter começado há duas ou três semanas” e estranha que, pelo contrário, tenha havido uma quebra.
“Não podíamos ter quebrado. As pessoas sentem-se seguras. A vacinação está a aumentar. A covid-19 não é tão grave nos jovens. Esta conversa toda. De repente, há uma explosão”, resume. “Há uma coisa que as pessoas não metem na cabeça: isto começa devagarinho; todos os dias cresce um bocadinho; a certa altura, há uma explosão.”