Xavier desenhou, Perroni gravou na madeira e uma obra nasceu
Xavier, utente da Associação de Paralisia Cerebral de Guimarães, é uma pessoa com síndrome de Down. Mas também é um artista cujo talento está escondido. Para o mostrar à sociedade, o artista Fábio Perroni traduziu numa tábua um desenho de Xavier. A obra será leiloada num estabelecimento vimaranense.
Ele é “um comunicador nato”. Na Associação de Paralisia Cerebral de Guimarães, que frequenta desde 2009, é quase “um relações-públicas”: “Recebe toda a gente, é excelente na parte social de todos os nossos eventos, gosta de subir aos palcos e falar ao microfone.” É assim que a directora técnica da instituição, Cláudia Esteves, descreve Xavier Fernandes. O utente da APCG tem 25 anos e é uma pessoa com síndrome de Down. Para além de tudo isso, “tem uma natureza muito criativa para o desenho”.
Cada uma das suas obras conta uma história, os traços traduzem “o que ele experiencia” e há motivos por detrás das cores e dos sítios que retrata. Por isso, não é de estranhar que, quando o conheceu, Fábio Perroni teve poucas dúvidas sobre o seu talento: “Achei incrível. Pensei: ‘O cara é um artista!’”, conta ao PÚBLICO. Com Xavier, o artista brasileiro de 46 anos trabalhou na criação de uma obra que será leiloada na wine house Vinhos do Bairro, em Guimarães. O estabelecimento acolhe, a partir desta sexta-feira, a exposição Origine, composta por obras inéditas de Perroni; os trabalhos estarão à venda e parte do valor seguirá para a APCG. Para além disso, o valor arrecadado do leilão reverterá para a associação.
No desenho de Xavier que Perroni gravou na madeira, o que mais salta à vista, como em todas as obras do utente da APCG, é uma grande e sorridente boca vermelha. “Vimos os desenhos e reparamos nas perspectivas [que ele usa], os registos chamam a atenção. É sempre muito expressiva, a boca”, diz o artista. Vê esta cooperação artística como “uma troca absurda”: “A arte dele é muito livre. Quero aprender com ele.” Porquê? “Ele não tem alguns filtros que a gente desenvolve. Desenha Afonso Henriques com roupa de Verão [e diz que é] por estar calor. Se olharmos por uma perspectiva cultural, actual e ideológica, [também há] uma mistura de género: não importa ser homem ou mulher, se é roupa de mulher ou se é de homem”, responde.
Natural de Salvador, na Bahia, Perroni é designer gráfico “há 23 anos” e artista desde que se lembra. Apesar de dizer que não gosta “de seguir apenas um caminho”, grande parte das 20 obras que estarão expostas aponta para a mesma abordagem multidisciplinar no que à criação artística diz respeito. Os cinzéis que furam as tábuas lisas criam linhas propositadamente disformes, num diálogo de diferentes texturas com a abordagem de Perroni à arte urbana, principalmente através do preto, do branco, do vermelho e do azul. Tudo é feito com o devido respeito à ausência de regras do experimentalismo.
Talentos escondidos e adormecidos
As 20 obras que estarão expostas na Vinhos do Bairro começaram a ser produzidas em Agosto do ano passado, quando o artista voltou com a família para Guimarães (para onde emigrou em 2018), depois de uma temporada em Cape Cod, no Massachusetts, Estados Unidos. Por lá, com “muitos materiais”, como lonas e tábuas, “e muito tempo” para preencher, deu o verdadeiro “start na carreira de artista”. O desafio de Elsa Henriques, proprietária do estabelecimento que recebe a exposição, não poderia surgir em hora mais certa para Perroni — e para a APCG, que procura abrir as portas à comunidade sempre que consegue.
Cláudia Esteves diz que Xavier “surpreende na sua comunicação, de forma criativa e visual”. Pela APCG, não é o único que desenha outros mundos numa folha branca. “Utilizamos o trabalho artístico como uma das nossas ferramentas de trabalho diário, seja através da dança, da música ou do desenho”, explica a directora técnica. A arte, diz, faz com que os utentes “sonhem o que não conseguem ser na vida real”. “Acabamos por levá-los para outra dimensão, porque não podemos fazer terapias que os infantilizem e que sejam aborrecidas”, justifica.
Isso pode ser conseguido, por exemplo, através do grupo de dança inclusiva que foi criado na associação. Por ali, constroem-se “cenários de sonho” e “bailados lindíssimos” que aproximam a comunidade vimaranense (e não só) desta realidade. “Sempre fomos apologistas de envolver a comunidade. A verdade é que se desconhece este mundo da paralisia cerebral e de doenças neurológicas afins”, aponta. É quando as portas se abrem que a comunidade se surpreende “com a capacidade que os utentes têm”. E a “oportunidade” de trabalhar com Perroni “é uma forma de provar” que por ali — e noutras associações semelhantes — “existe um potencial enorme”, para além de “talentos escondidos e adormecidos” que raramente encontram o reconhecimento da sociedade.