A opinião pública e a denúncia

Será que é precisamente por caras conhecidas pelo grande público que vamos pôr o dedo na ferida machista que pulsa no nosso país? Talvez seja este o pontapé de saída para deixarmos de desculpar comportamentos silenciosos de pressão sobre mulheres e homens nos locais de trabalho.

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Sofia Arruda DR

Na semana passada, os meios de comunicação noticiaram a sentença de um caso de violência doméstica em Paredes, no qual o agressor, apanhado em flagrante pela GNR, acabou absolvido por ter sido considerado pela juíza que não houve “crueldade, insensibilidade e desprezo” nos actos do agressor. Não é que a agressão não tenha sido provada. Foi. Havia testemunhas. Mas, ainda assim, para a juíza daquele tribunal, tratou-se apenas de um “desabafo” de um homem que decidiu, carinhosamente, arrastar a mulher até ao carro pelo pescoço. Não foi a primeira vez que esta mulher teve de chamar a GNR para a ajudar, mas a juíza decidiu dar uma terceira oportunidade ao agressor. Pode ser que, à terceira, seja de vez.

Claro que a opinião pública não aprovou a decisão e os comentários multiplicaram-se nas redes sociais. Mas é a mesma opinião pública que critica Sofia Arruda por, na sua entrevista ao Alta Definição, não nomear o alegado agressor. E a mesma opinião pública que criticou Joana Emídio Marques quando nomeou o alegado agressor. A mesma opinião pública que se desdobra em comentários como “agora é que se vem queixar”, “devia ter ido à polícia”, entre outros em que o foco é sempre desvalorizar a acusação.

Sofia Arruda, munida de muita coragem, abriu as portas do que poderá ser o início do movimento #MeToo e disse o que toda a gente já sabia mas tinha medo de dizer: afinal o assédio no meio audiovisual também existe em Portugal, não é só nos Estados Unidos. Por ser um facto sabido e não discutido, só torna a situação mais grave, essa cumplicidade encoberta de quem fecha os olhos porque “é assim”, porque “elas também se aproveitam para subir na carreira”.

A chuva de críticas, como sempre, não tardou. Afinal, ela nem disse quem a tinha assediado. Afinal, ela até tem uma carreira de sucesso. Afinal, não deve ter sido assim tão mau. Mas também outras vozes se levantaram em apoio e em partilha das suas próprias histórias: Catarina Furtado, Jessica Atahyde, Joana Solnado, Débora Monteiro e até alguns homens, seus colegas, mostraram o seu apoio.

A conclusão a que se chega é que, sendo uma vítima de assédio ou violência doméstica (creio que homem ou mulher), no nosso país, não “se ganha”. Nem indo à justiça, nem falando nos meios de comunicação disponíveis. Se se recorre à justiça, o mais provável é ver o agressor ilibado e fica, assim, a vítima desprotegida e à mercê de um novo ataque, com ainda mais raiva e impunidade. Se não se recorre à justiça, há sempre dúvidas que pairam sobre a idoneidade da vítima.

Será isto o advento do movimento #MeToo em Portugal? Será que é precisamente por caras conhecidas pelo grande público que vamos pôr o dedo na ferida machista que pulsa no nosso país? Talvez seja este o pontapé de saída para deixarmos de desculpar comportamentos silenciosos de pressão sobre mulheres e homens nos locais de trabalho. Uma pressão quase imperceptível e que quando precisa de ser explicada tem poucas palavras para ser descrita e acaba por ser desvalorizada.

Seja num contexto laboral, ou doméstico, enquanto sociedade temos de acabar com o discurso de que bastava ir embora, virar costas e denunciar, ignorando todas as nuances que este tipo de pressão têm sobre as vítimas. Como se alguma coisa na vida e nas relações interpessoais fosse assim tão simples. Seja em casos com pessoas famosas, ou anónimas, temos de falar abertamente sobre o que é violência, o que é assédio, sem ter medo da autocrítica e da mudança.

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