UE tem responsabilidades nas mortes no Mediterrâneo, diz ONU
Corpos de crianças e mulheres deram à costa numa praia da Líbia. Para o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, “grande parte do sofrimento e das mortes na rota do Mediterrâneo Central são evitáveis”.
Um dia depois da publicação de fotografias de corpos de bebés, crianças pequenas e mulheres que deram à costa numa praia da Líbia, um relatório das Nações Unidas diz que as mortes por afogamento no Mediterrâneo não são uma “anomalia trágica” mas uma “consequência de decisões políticas e de práticas concretas das autoridades líbias, dos estados-membros e das instituições da União Europeia”.
De acordo com uma das organizações não-governamentais que publicou as fotografias da praia de Zuwara no Twitter, as crianças tinham viajado com os pais numa das muitas embarcações que partiram da Líbia nos últimos dias, com destino às costas europeias. A semana passada, a Tunísia disse que dezenas de pessoas morreram num naufrágio ao largo do país; em Abril, mais de 130 pessoas morreram quando o seu barco de borracha se virou junto à Líbia.
“Ainda estou em choque com o horror destas imagens”, escreveu no Twitter Oscar Camps, fundados da Proactiva Open Arms, uma das ONG que teve um navio de resgate no Mediterrâneo. “Imagens de bebés e crianças pequenas numa praia da Líbia são inaceitáveis”, reagiu o primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, depois de um encontro em Bruxelas com o Presidente francês, Emmanuel Macron, para debater a gestão das chegadas de migrantes e requerentes de asilo e as perspectivas de estabilização da Líbia.
“Estas imagens são dramáticas”, afirmou Flavio Di Giacomo, porta-vos da Organização Mundial das Migrações. “Estamos a tentar perceber o que aconteceu com os nossos colegas na Líbia”, explicou, admitindo que “há muitos naufrágios que nunca são registados, não podemos excluir que este seja um deles”.
No relatório de 37 páginas intitulado “Desprezo letal”, o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados diz que as políticas e as práticas em vigor “não dão prioridade à vida, à segurança e aos direitos humanos das pessoas que tentam passar de África para a Europa”. A agência apela por isso à Líbia e à UE para reformarem com urgência as suas operações no Mediterrâneo.
“A verdadeira tragédia é que grande parte do sofrimento e das mortes ao longo da rota do Mediterrâneo Central são evitáveis”, afirmou a responsável deste departamento das Nações Unidas, a antiga Presidente chilena Michelle Bachelet.
O relatório confirma aquilo que várias ONG e outras organizações já têm sublinhado nos últimos meses, notando como os países da UE reduziram as suas operações de busca e salvamento, ao mesmo tempo que as ONG são muitas vezes impedidas de realizar salvamentos – em 2018, por exemplo, a Proactiva Open Arms viu o seu navio Astral confiscado, os líbios dispararem contra os seus tripulantes e enfrentou acusações na Justiça italiana.
Em simultâneo, Bruxelas encorajou os líbios a assumirem grande parte das tarefas de busca e salvamento, com pelo menos 10.352 migrantes interceptados pela guarda costeira da Líbia e levados para o país em 2020, mais 2000 do que no ano anterior. Impossível é saber quantos pediram ajuda e ficaram por salvar: muitos alertas de naufrágio passados pelos europeus aos líbios ficam por responder, como mostram transcrições de escutas a responsáveis da guarda costeira, parte de um processo de magistrados italianos que em Abril foi revelado numa investigação conjunta do diário britânico The Guardian, da emissora italiana RAI News e do jornal Domani.
Entre Janeiro de 2019 e Dezembro de 2020, o período abrangido pelo relatório, pelo menos 2239 pessoas morreram a tentar atravessar o Mediterrâneo nesta rota, que começa quase sempre na Líbia com destino a Itália ou Malta. Estas, claro, são as mortes conhecidas. Num relatório divulgado em Março, o Conselho da Europa escreve que os dados sobre os naufrágios de requerentes de asilo dos últimos anos “devem sub-representar o número real de mortes, que acontecem com cada vez mais probabilidades fora dos radares”.
Quanto às pessoas levadas de volta para a Líbia, são em muitos casos alvo de graves violações de direitos humanos, como várias ONG têm denunciado. “Todos os anos, as pessoas afogam-se porque o socorro chega tarde ou não chega”, escreve Bachelet. “Os que são socorridos são muitas vezes obrigados a esperar dias ou semanas antes do desembarque ou, como acontece cada vez mais frequentemente, são reenviados para a Líbia, que, como foi sublinhado em inúmeras ocasiões, não é um porto seguro.”