Seguro sobre Guterres: “Nunca procurou a vitória pela vitória, nunca encurralou o outro”

Elogia cultura, trato, habilidade e negociação do secretário-geral da ONU. Despediu-se a correr com um “até breve”. De cortesia, premonitório ou sem jeito?

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Mónica Ferro e António José Seguro LUSA/MÁRIO CRUZ

Na apresentação, esta segunda-feira da biografia de António Guterres, O mundo não tem de ser assim, o ex-secretário-geral do PS António José Seguro reapareceu, depois de ter perdido a corrida interna para a direcção do partido para António Costa. O poder de convocatória de um qualquer “ex” existe e havia expectativa.

Foi na definição da personalidade do antigo primeiro-ministro Guterres, com quem trabalhou como secretário de Estado e ministro, que Seguro pronunciou uma frase sonora. “António Guterres nunca procurou a vitória pela vitória, nunca encurralou o outro”, disse a uma das cinco perguntas a que foi convidado responder pelos autores da obra. Ou seja, não teve Guterres instinto duro nem pose de animal feroz. 

À memória de quem ouviu esta frase, surgiu o comentário de Costa, então challenger de Seguro, sobre a dimensão do resultado dos socialistas nas eleições europeias de 2014: “Poucochinho”. O que hoje se traduziria por sem ambição. E o candidato viria a ganhar ao então secretário-geral, autor também de uma frase que ficou célebre - “Qual é a pressa?” -, referindo-se à pressão do seu adversário interno.

Nesta segunda-feira, António José Seguro não voltou ao tema, mas recordou que Guterres não opta por becos sem saída, que dá sempre uma saída ao outro. Elogiou-lhe a formação humanista e a força interior, referiu-lhe a cultura extensa mas, sobretudo, destacou o que o torna ímpar: a “habilidade para a negociação” de um “adepto do compromisso e capacidade de diálogo”. Aquela que não encurrala, mas encaminha, disse a propósito das tarefas do actual secretário-geral das Nações Unidas.

Seguro não se escudou a comentar temas de actualidade. Como a ascensão dos populismos. “Há uma dupla erosão, a dos partidos sociais-democratas e dos partidos tradicionais”, constatou. “Há um recuo, a democracia não está a responder aos problemas das pessoas, há má gestão dos recursos públicos, abriu-se um campo de desilusão”, reconheceu. “O socialismo democrático sempre foi a alternativa”, disse, historiando três momentos marcantes. Contra o dogma do socialismo cientifico, do que apresentou como binómio totalitário – fascismo e comunismo –, e do discurso neoliberal.

“O socialismo democrático sempre soube combater as desigualdades, mas há um deslaçar da coesão social e da classe média”, reflectiu. “Com rigor nos gastos dos recursos públicos e com ética, os populismos não têm oportunidade”, sentenciou. À saída escusou-se a responder a perguntas por ter alunos à espera, saudou quem reencontrou apesar das máscaras e reconheceu vozes. Partiu com um “até breve”, signifique o que signifique, se algo significa. A mensagem forte foi a de não encurralar ninguém e de fazer pontes, citando António Guterres. Porventura com lembrança dura da forma como perdeu a direcção do partido.

Mas António José Seguro não está optimista sobre o mundo actual. “Não sei se hoje Timor-Leste seria independente, a Indonésia [ocupante do território] é o quinto país mais populoso do mundo e a 18.ª economia mundial”, assinalou. “A independência de Timor-Leste é um caso de estudo, houve uma conjugação de factos que teve a ver com a qualidade da nossa diplomacia, depois a coragem dos membros da missão portuguesa que estavam ameaçados pelas milícias [da Indonésia] durante o referendo e resistiram”, enumera.

“E António Guterres criou uma rede de respeito pela autodeterminação de Timor Leste”, concluiu. Mónica Ferro, também convidada para a apresentação da biografia de Pedro Latoeiro e Filipe Domingues, directora do Fundo das Nações Unidas para a População com sede em Genebra, é prudente quanto ao futuro. Receia que as crises económicas suscitadas pela covid-19 levem ao corte de financiamentos. “Desde que a pandemia começou, identificámos os grupos com maiores vulnerabilidades, este é o momento de reconstrução e reconfiguração da solidariedade internacional que é uma obrigação”, alertou a antiga deputada do PSD.

Espera que um segundo mandato de António Guterres como secretário-geral da ONU chegue a bom porto. “Com a confiança no multilateralismo e para que não cortem financiamentos para as missões de paz”. Seguro não se afasta do guião do multilateralismo com Guterres em Nova Iorque. Mas com um reparo: “Desde que não seja instrumento da política entre os Estados Unidos e a China.”

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