Bob Dylan, um espelho de gerações
Não é fácil mergulhar no mundo de Dylan para quem não pensa sobre música conforme ela é: uma complexa variedade de dimensões, factores e elementos. Essa simbiose, pálida e sobranceira, onde os hinos e as causas pintavam a tela do quotidiano, é o socalco em que Dylan se debruça.
“Há homens que falam por si, há outros que falam pela sua geração.” Assim era apresentado Dylan no Live Aid de 1985 por Jack Nicholson. É muito por aí que Dylan, que cumpre 80 anos esta segunda-feira, 24 de Maio, merece páginas de jornais. Num mundo em que se escreve mais do que lê, o progresso foi sendo feito por quem se levanta, de forma mais ou menos azeda, contra a displicência da atmosfera comercial.
Filho dos anos 60, onde a sociedade era diariamente encetada com lâminas de gelo fino em novas “classes” e “consciências”, Bob Dylan apresenta-se como um dos rostos do movimento quase modernista, alicerçado na literatura, em que homens pouco dados ao optimismo da época compunham a world music — um estilo musical onde o protagonismo pertence à mensagem, onde é a melodia que faz companhia às palavras e não o contrário.
Não é fácil mergulhar no mundo de Dylan para quem não pensa sobre música conforme ela é: uma complexa variedade de dimensões, factores e elementos. Essa simbiose, pálida e sobranceira, onde os hinos e as causas pintavam a tela do quotidiano, é o socalco em que Dylan se debruça. Os tempos estavam a mudar e como profeta ele bem o sabia. Se Blowin’ in the Wind é o retrato pitoresco das questões suscitadas pelo zeitgeist acelerado e romanesco, o álbum Blood on the Tracks é o início de uma fase intimista e pessoal, pouco comum para um poeta, até então, bastante reservado.
Agónico e amargo, Dylan balbucia a desilusão amorosa que lhe havia sido imposta por Sara. A auto comiseração patente ao longo do disco — “Our conversation was short and sweet / It nearly swept me off my feet / And I’m back in the rain / Oh, and you are on dry land" — não lhe retira o respeito a que sempre foi dado, nem a elevação do carácter altruísta — “Say for me that I’m all right though things get kind of slow / She might think that I’ve forgotten her, don’t tell her it isn’t so".
Há uma elevação de carácter lenitiva ao longo do álbum, onde o narcisismo é deixado para trás à medida que a caneta vai esculpindo a próxima faixa. Acima de tudo, Dylan apresenta-nos um trabalho confessional onde as mais banais emoções jorram, como baldes de chuva, num leito poético metamorfoseado em harmonia melódica. Se há um legado dessa geração — céptica e involuntariamente endeusada — que merece um reconhecimento atempado é a recusa em virar as costas à perda, à dor e à solidão. Esse cinismo e resistência em entrar no desfiladeiro do Admirável Mundo Novo torneou a artificialidade e almofadou a prosternação dos vencidos da vida.
Mesmo pisado pelo blood on the tracks, Dylan nunca deixou de se apresentar como um verdadeiro sociólogo musical, arte a que tantas vezes deitou a mão para mostrar o seu desagrado com os Modern Times, esta era onde tudo passa e nada dura, um mundo onde já não estamos a falar, só a deixar andar — “All my loyal and my much-loved companions / They approve of me and share my code / I practice a faith that's been long abandoned / Ain't no altars on this long and lonesome road".
A discografia inesgotável de Dylan é sobre esse choque, essa cólera pacificada de quem tantas vezes interferiu no curso do mundo em cinco ou seis minutos com uma guitarra e uma harmónica. De quem tantas vezes cravou as angústias de todo um povo numa tonalidade lacónica e gongórica, de quem sabe que para se ser chamado de homem é preciso correr muitas estradas primeiro, até porque só quem aceita sangrar é capaz de se curar e conjugar a ambiguidade entre a derrota e a esperança. E essa é a vitória possível quando nos tiram o cadafalso. E se isso não for suficiente, sobra o cantar ao vento: “Idiot wind, blowing every time you move your mouth / You’re an idiot, babe / It’s a wonder that you still know how to breathe".