Sabia que as amêijoas são semeadas?
Sim, as amêijoas crescem naturalmente nos seus bancos naturais, nos estuários e nos oceanos. Mas, sim, também são semeadas nos viveiros das zonas lagunares. Madalena da Conceição é uma entre dezenas de apanhadoras de amêijoas de semente na ilha da Culatra.
Madalena da Conceição tem 60 anos e mede 1,47 metros, mas ao percorrer um banco de natural de amêijoas na ilha da Culatra, no Algarve, parece alguém que cresceu numa pista de atletismo. Anda com passada rápida, pára, agacha-se, rapa o solo, levanta-se, fala – e como fala –, volta a agachar-se, ri-se, atira do nada uma receita de amêijoa-cão com batata-doce, diverte-se com as andorinhas que a rodeiam, fala de Deus e canta que se farta, tudo isso a uma velocidade tal que o Daniel Rocha e a sua câmara têm dificuldade em focar o rosto e uns olhos da cor do céu sem nuvens.
A ilha da Culatra e os dois viveiros que tem por sua conta, a filha adoptiva que vai ser mãe, Nossa Senhora dos Navegantes e o marido – Rui Ferreira da Conceição – são paixões tão intensas que, por vezes, entram todas numa mesma frase.
Rui é pescador da arte do polvo e foi fundador da Associação dos Moradores da Ilha da Culatra e seu presidente durante 13 anos. “Ele, com os seus colaboradores, fez muito pela Culatra. As coisas, antigamente, eram muito diferentes. O meu marido, por exemplo, nasceu à ‘volta da bóia’, como quem vai para Olhão.”
Aqui justifica-se uma pausa porque, apesar de a geografia das ilhas da ria Formosa não ser o nosso forte, e apesar de a imaginação nacional para a invenção de nomes de terras ser aquela que se conhece, não nos ocorre onde possa ficar essa Volta da Bóia. E lá sai a pergunta, cuja resposta chega em tom humilhante e com risos. Volta da bóia não é terra. Volta da bóia é mar. Nascer à volta da bóia quer dizer nascer num barco – nascer no mar. Neste caso, Rui Conceição “nasceu no canal, entre a Culatra e Olhão, porque a mãe não conseguiu chegar a tempo ao hospital”. “Foi o meu sogro que fez de parteira.”
Colher de um lado para semear no outro
Madalena e outras dezenas de mulheres andam na lida da ameijoinha, que o mesmo é dizer andam a apanhar amêijoas com um ou dois centímetros, destinadas ao repovoamento dos viveiros do Algarve. Já agora – e para evitar as ideias feitas – viveiros de amêijoa são apenas espaços naturais e confinados, concessionados às famílias de mariscadores, onde se lançam as tais amêijoas de semente, que crescerão exclusivamente com o fitoplâncton que as marés trazem. Só isso. Entre a sementeira e a apanha pode decorrer entre um ano e ano e meio, variando esse tempo em função das correntes e da temperatura das águas. Por vezes corre tudo bem, por vezes há mortalidades consideráveis.
A amêijoa-boa do Algarve é produzida em cerca de 1500 viveiros e é a grande fonte de rendimento dos mariscadores. Apesar de terem alguma capacidade de regeneração, estes quadrados ou rectângulos de terreno alagado precisam de ser “semeados” regularmente. Como? Através das amêijoas pequenas capturadas nos bancos naturais da região, onde existem diferentes espécies de amêijoa, berbigão e longueirão. Tira-se de um lado e põe-se noutro. Essa é a regra.
Esta actividade de apanha de semente é determinante para muitas famílias piscatórias. “A gente vem aqui quase todos os dias e em três horas podemos apanhar dois quilos de amêijoa. Poderão, por exemplo, valer uns 16 euros. Não é muito, mas sempre ajuda”, diz esta catequista e ministra da comunhão.
Como é que Madalena descobre as sementes de amêijoa, isso é que parece um mistério. Detecta-as enterradas a dois ou três centímetros de profundidade através de uns pequenos buracos no solo. Até aqui, tudo bem. A questão é que todos os minúsculos buraquinhos no chão do banco natural de bivalves são iguais, menos, claro, aos olhos destas mariscadoras, que sabem muito bem distinguir, e com rapidez, um olho de amêijoa-boa de outro de amêijoa-cão, ou de longueirão. No caso desta espécie – também conhecida como navalha – já conseguimos identificar o pequeno buraco em forma de oito deitado. Menos mal.
Não conseguimos, porém, equacionar a hipótese de ficar, todos os dias, três horas de costas curvadas e a raspar no solo. “Se isto custa? Já estamos habituadas. Falamos umas com as outras. A minha irmã também anda aí. No meu caso, canto. Gosto muito. Quer que cante alguma coisa?” Faça favor.