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Julião Sarmento, o nosso ecrã

O que se faz quando se perde a memória? O que se faz quando se perde o Julião? Não sabemos. Vamos ficar desamparados, desazados e mudos. Julião, nas tuas imagens estão contidas todas as nossas, por outras palavras.

O que se faz quando se perde a memória?
O que se faz quando precisamos de digerir o que aconteceu para podermos imaginar o que virá?
O que se faz quando se perde o Julião?
Não sabemos.
Vamos ficar desamparados, desazados e mudos.
Não teremos medida para o que não lemos, não vimos nem haveremos de saber. Não teremos mais ninguém para nos juntar todos à volta de uma mesa, nem para nos mostrar o que ainda nem sabíamos que queríamos saber.

Porque o Julião era mesmo assim.

Não me perguntem como é que ele tinha tempo para ver os filmes que via, nem para ler os livros que lia, nem para falar com as pessoas com quem falava, nem para ver as imagens que nos mostrava. Como é que conseguia ter aquele entusiasmo, como uma criança, com o que via e lia e partilhava, porque mostrar e, com isso, juntar, era a expressão que todos conhecíamos da sua generosidade. A mesma que o fazia documentar tudo, todos os jantares, todas as viagens. Guardar todas as cartas, mensagens, cartões de visita, todos os catálogos de todas as exposições, todos os convites, todas as folhas de sala, tudo. Para poder partilhar, um dia qualquer, durante um jantar: descia à cave e trazia na mão a carta, a fotografia ou o desdobrável que comprovava a estória que tinha contado, tudo em minutos, só possível pela extraordinária organização e catalogação que nunca o vi fazer. Como em tudo no Julião, o esforço parecia sempre irrelevante face ao resultado.

Nas muitas vezes que estive no seu atelier, o que vi estava feito, ou estava parado à espera de ser terminado. No espaço daquela nave industrial, gelada no inverno, havia sempre uma exposição quase a partir ou uma série nova de trabalhos para ver.

Mas nunca, ao longo de todos estes anos, o vi trabalhar, quer dizer, nunca o vi pintar, nem desenhar, nem nada. As coisas nasciam como que por uma determinação espontânea da vontade.

Quando, não sei.
Muito cedo de manhã, talvez.

E era sempre surpreendente, porque tinha uma intuição muito aguda, um olhar tão afiado que via o dúbio, o esquivo e o indefinido no que parece evidente, estável e claro.

Afiava o olhar nos corpos que por ele passavam. Umas vezes pessoas, outras vezes casas, facas ou plantas. Afiava o olhar dos outros, também, nas memórias que colecionava, nas obras dos outros artistas que reunia e trocava, um grande respigador do tempo.

O Julião é, e não há tempo verbal que me faça pôr isto lá para trás, a memória corporalizada da vida.

A memória, quero dizer, a possível memória futura, porque nas suas imagens está contida toda a nossa possibilidade de tocar o que ainda não sabemos que poderemos desejar.

Toda a nossa vida futura esteve contida nas suas imagens.

Se assim não foi, é porque a nossa memória já se embebia da sua e, por uma qualquer vaidade, acreditámos que aqueles corpos nas suas imagens, amputados, claudicantes, desejados, desamparados, estáticos, frementes, ou só ali, sustenidos, poderiam vir a ser, ou foram (os) nossos.

O Julião é o nosso ecrã.
E cá estamos para nele projetar os nossos prazeres, expectativas e súbitas pequenas mortes.
Julião, nas tuas imagens estão contidas todas as nossas, por outras palavras.

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