O teletrabalho faz-me feliz? Não, não faz
Trabalho presencial e trabalho remoto não são a mesma coisa, e nem a excepcionalidade dos tempos que vivemos pode ofuscar as diferenças. Se o teletrabalho veio, como dizem, “para ficar” além da pandemia, eu quero ter o direito de escolher o que me faz feliz, e este teletrabalho compulsivo, desligado do outro e desmedido, decididamente, não faz.
O teletrabalho vai continuar obrigatório até 16 de Maio e, depois disso, continuará a ser obrigatório até ao final do ano em todos os concelhos considerados pela Direcção-Geral da Saúde como sendo de risco elevado ou extremo de contágio da doença covid-19, sempre que as funções em causa o permitam e o trabalhador disponha de condições para as exercer. Se é ao empregador que cabe demonstrar que as funções em causa não são compatíveis com o regime do teletrabalho, não lhe cabe demonstrar, nem nunca coube, que o trabalhador dispõe de todas as condições para teletrabalhar. Acresce que, para o trabalhador, não há livre escolha de regime: o trabalhador não opta, é obrigado a ficar em teletrabalho.
É verdade que viemos para casa quando não havia outro remédio, e tivemos que nos remediar com o que tínhamos. Não importava que a internet fosse instável, que o computador, por azar, tivesse avariado, que houvesse espaço a menos e vozearia a mais. O problema era geral, logo, fosse como fosse, tínhamos de nos adaptar “ao novo normal”. Estar dentro das paredes do nosso lar, como ouvi várias vezes, era até uma benesse: poupávamos dinheiro, ganhávamos tempo, para os nossos, para o trabalho e “para o pôr em ordem”, e ficávamos livres dessa rotina extenuante da casa-trabalho, trabalho-casa. Não foi assim, nem podia.
Entretanto, quando já levamos mais de um ano de pandemia, continuamente se efabulam as virtudes do digital, mas não há sobre o teletrabalho e os seus efeitos discussão séria. As orientações da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), relativamente à proibição da utilização de meios de vigilância à distância com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador, seriam sempre insuficientes para que a porta não se escancarasse “a abusos por parte dos patrões, ao controlo excessivo ao trabalho fora de horas e a despesas que não são pagas”. A isto, que já não é pouco, somam-se as coacções de quem manda sobre os precários, o desrespeito pelos tempos de descanso, o isolamento e o cansaço.
Byung-Chul Han, professor de Filosofia e Estudos Culturais na Universidade de Berlim e autor, justamente, do livro Sociedade do Cansaço, lembrava há poucos dias aqui esses e outros males: que o teletrabalho não nos dará nem mais tempo, nem mais liberdade; antes, é meio caminho para uma servidão consentida, que a comunicação pelo ecrã, onde não há corpos, nem olhares, nem sorrisos, nem toque, é uma comunicação sem ressonância, desumana e, portanto, incapaz de construir laços ou vínculos sociais. Mais, é uma “comunicação que não nos traz felicidade”.
Estive em teletrabalho, sim. E sei que foi, em tempo de medo, desemprego e de morte, um privilégio que muitos não tiveram, mas estou cansada. Cansada, entre outras coisas, de responder a e-mails entre uma máquina de roupa que é preciso estender e o arroz que é preciso adiantar para o almoço, de assistir a webinars que se multiplicam, de manhã e à tarde e na semana, como cogumelos, de estar em meetings e reuniões, para além das que se marcam, remarcam e desmarcam como se a única agenda da nossa vida fosse a do trabalho, de gerir o número de acessos em simultâneo à internet, o barulho, os nervos dos filhos e os filhos por assoalhada, de não ter casa, que agora é home office, de não estar sozinha, de não estar com gente.
Trabalho presencial e trabalho remoto não são a mesma coisa, e nem a excepcionalidade dos tempos que vivemos pode ofuscar as diferenças. Se o teletrabalho veio, como dizem, “para ficar” além da pandemia, eu quero ter o direito de escolher o que me faz feliz, e este teletrabalho compulsivo, desligado do outro e desmedido, decididamente, não faz.